domingo, 23 de março de 2014

A samaritana não se disfarçou de santa

Crónica de Frei Bento Domingues
no PÚBLICO

Porque teria Jesus confiado a evangelização 
da própria Igreja às mulheres?


Frei Bento Domingues

1. Ao longo dos anos, foi-se desenvolvendo nestas crónicas a convicção do nosso atraso, como Igreja e como sociedade secular, em relação ao questionamento social e místico de Jesus Cristo: não vos conformeis com a situação actual do mundo! Ao ler o texto do Evangelho na Missa, em vez do ritual, “naquele tempo”, parece-me preferível um convite: escutemos o que diz, hoje, Jesus aos seus discípulos…

Pensava nisto, ao entrar numa casa de artigos religiosos sem qualquer beleza, acompanhados de livrinhos de piedade rançosa, quando deparei com um título inesperado naquele cenário: As 23 Mulheres do Concílio. A presença feminina no Vaticano II.

O papa Paulo VI anunciou oficialmente a presença de vinte e três mulheres, como auditoras, no Concílio Vaticano II. De Setembro de 1964 a Agosto de 65, foram chamadas, uma por uma: dez religiosas e treze leigas, escolhidas segundo critérios de competência e de internacionalidade”.


Na previsão de muitos padres conciliares, a participação delas deveria revestir-se, sobretudo, de carácter simbólico. Essa presença depressa ultrapassou as barreiras previstas, acabando por deixar, nos próprios documentos conciliares, sinais importantes detectados na investigação da historiadora e teóloga, Adriana Valerio. Ao apresentar as figuras e os meandros das intervenções destas madres conciliares que, pela primeira vez, tomaram parte, de forma eficaz, nos trabalhos de um Concílio ecuménico, mostra o longo caminho a percorrer para desempenharem na Igreja a missão que o Ressuscitado lhes confiou.

Na Aula conciliar, propriamente dita, nem sequer puderam agradecer terem sido convidadas. Ouviram do secretário do Concílio, P. Felice, a proibição paulina, as mulheres estejam caladas nas assembleias (1Cor 14, 34).

Ao verificarem a involução do Concílio, comprovada no Sínodo de 1971, não se conformaram e remaram contra a maré até ao limite das suas possibilidades, chegando a apresentar a sua demissão. Acabou por vencer, de forma autoritária, quem não dispunha de argumentos. Quem julga que está tudo definitivamente resolvido, talvez se engane. O passado do Evangelho é voz da promessa irrevogável. Vejamos.

2. No Novo Testamento (NT), a conhecida hostilidade entre vizinhos, judeus e samaritanos, é realçada para destacar a arte de Jesus na destruição dos preconceitos do seu próprio povo. Repreendeu os seus discípulos, com sede de vingança, pelo mau acolhimento na Samaria (Lc 9, 54-55). Mas não só. Depois de tudo o que já tinha sido dito sobre o ardente amor a Deus e ao próximo, surge a pergunta de quem gosta mais de conversar do que de meter as mãos na massa – mas quem é o meu próximo? – Jesus arruma aquela petulância, escolhendo um samaritano, um herético e cismático, de quem não se podia esperar nada de bom, para tecer uma parábola de contrastes: Descia um homem de Jerusalém para Jericó e foi assaltado, despojado, espancado, ficando quase morto. Um sacerdote viu-o e passou adiante; veio um levita, viu-o e não parou. Um samaritano viu, encheu-se de compaixão, desceu da sua montada, levou-o a uma estalagem para ser tratado, pagou todas as despesas e só depois foi à sua vida. Foi a vez de Jesus questionar o perguntador retórico: o nosso próximo é aquele cuja situação real nos interroga, nos move e nos comove (Lc 10, 29-37).

3. Para alguns intérpretes do NT, a presença das mulheres é tão irrelevante que poderia ser suprimida, sem se perder grande coisa. Figuram, nos Evangelhos, como as 23 mulheres no Concílio Vaticano II: puro adorno dispensável.

Seria possível suprimir o longo diálogo entre Jesus e a Samaritana (Jo 4,1-42), tema de fundo da Missa deste domingo, que mostra o nosso inveterado atraso eclesial, acima evocado?

Vale a pena percorrer a espantosa narrativa do encontro de um “judeu marginal”, Jesus, com uma samaritana pouco recomendável, junto a um poço, no pico do calor. A arte de S. João consiste em dar a impressão de que eles estão sempre a desconversar, saltando de assunto para assunto, sem linha de conversa e a entenderem-se cada vez mais profundamente. Foi Jesus quem quebrou a animosidade inicial, mas a samaritana acaba por se esquecer do que foi fazer ao poço, sentindo-se perfeitamente compreendida por aquele judeu que desloca a religião do Templo de Jerusalém e do monte Garisim, para o culto do Pai, em espírito e verdade. Pressente que está a nascer nela uma fonte de eternidade, uma outra religião, um futuro novo.

Os discípulos de Jesus, meio escandalizados com o cenário não entendem, como de costume, o que se está a passar. Entretanto, a mulher partiu em missão: contou a sua experiência, não como protagonista, mas para levar os samaritanos a fazerem eles próprios o seu caminho.

Esta narrativa concentra todos os temas e percursos da verdadeira evangelização: a passagem da suspeita ao diálogo, do diálogo à mútua compreensão, da mútua compreensão à alteração da rivalidade religiosa, da rivalidade das instituições religiosas, a uma compreensão nova e universalizante da religião.

Porque teria Jesus, segundo as narrativas da Ressurreição, confiado a evangelização da própria Igreja às mulheres?

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