O escritor Erich Fried escreveu de forma provocatória: "Um cão/que morre/e sabe/que morre/ e pode dizer/que sabe/que morre/como um cão/é um homem." Na história gigantesca do universo, com 13 700 milhões de anos, sabemos que há ser humano, diferente dos outros animais, quando aparecem rituais funerários: eles revelam a presença de alguém que sabe que é mortal, que põe a questão da morte e do seu para lá.
A morte, aparentemente uma realidade tão simples e evidente - tudo o que vive morre, como diz a palavra portuguesa "nada", do latim res nata (coisa nascida) -, é o enigma e o mistério. Platão colocou aí uma das bases do filosofar, como também Pascal, Schopenhauer, Heidegger, entre muitos outros. Sim, a morte é natural, do ponto de vista biológico. Mas o homem não se reduz a biologia. Tem consciência de si enquanto eu, e, assim, abalado pela morte, protestava Unamuno: "Ai que me roubam o meu eu!" Na morte, o homem é confrontado com o nada e angustia-se. Face a algo de concreto que nos ameaça, temos medo; face ao abismo insondável do nada, o que surge é a angústia.
Perante a morte, as palavras falham. Ninguém sabe o que é morrer, esse passar de vivo a morto, já cá não estar. Ninguém sabe o que é estar morto, nem sequer para o próprio morto, como reflectiu o filósofo Levinas. Dizemos, diante do cadáver do pai, da mãe, do irmão, do filho, da filha, do amigo, da amiga: o meu pai, a minha mãe, o meu filho, a minha filha, o meu amigo, a minha amiga, está aqui morto, está aqui morta. Mas isso não faz sentido, pois o que falta é precisamente o meu pai, a minha mãe, o meu filho, a minha filha, o meu amigo, a minha amiga. O que ali está é um resto e o que falta é precisamente o sujeito, alguém. Como se não pode dizer que os levamos ao cemitério, pois ninguém se atreveria a enterrar o pai, a mãe, o amigo, a amiga ou a cremá-los. Também dizemos que vamos visitá-los ao cemitério. Ora, com excepção dos vivos que lá vão, nos cemitérios não há ninguém; apenas lixo biológico, "ossos e podridão", segundo o Evangelho. Pergunta-se então: o que há nos cemitérios, para que a sua profanação seja, em todas as culturas, um crime hediondo? Nos cemitérios, o que há não é senão esta pergunta infinita: o que é o homem, o que é um ser humano?
Nas nossas sociedades tecnocientíficas e citadinas, a morte tornou-se tabu, o último tabu. Tabu já não é o sexo, mas a morte. Não se pode dar sinais de luto, mente-se às crianças e da morte pura e simplesmente não se fala ou, pelo menos, é de mau gosto e de mau tom falar dela.
Não se julgue que isso acontece, porque a morte já não é problema. Pelo contrário, de tal modo é problema, o único problema para o qual uma sociedade que se julga omnipotente nos meios não tem resposta nem solução que a única solução é ignorá-la, como se não existisse. Trata-se de uma sociedade centrada na produção e consumo, no ter, no êxito, no cálculo, no espectáculo, no poder. Ora, a morte interrompe toda esta lógica. Perdeu-se o sentido da morte e, consequentemente, o sentido da vida ou, talvez melhor, perdeu-se o sentido da vida e, consequentemente, o sentido da morte. Mas, então, também se perdeu o sentido ético: de facto, sem a consciência do limite no tempo, não se ergueria a problemática ética na sua urgência da liberdade na definitividade. É o pensamento sadio da morte que, como mostrou Heidegger, obriga à distinção entre existência autêntica e existência inautêntica, entre bem e mal, entre o justo e o injusto, o que verdadeiramente vale e o que não vale. E que dá o horizonte da fraternidade: à beira de morrer, disse H. Marcuse ao amigo Habermas: Sabes, Jürgen? Agora, sei onde se fundamentam os nossos juízos morais: na compaixão.
Mas até a Igreja Católica, na negociação dos feriados, preferiu a Senhora da Assunção aos dias de Todos-os-Santos e dos Finados. Um erro. De facto, estes são os dias da memória (lembrar todos os que partiram) e da interrogação essencial: o que é o homem?, viver para quê?, qual o sentido da existência? Nestas perguntas, transcende-se a morte como facto biológico e abre-se outra dimensão.
Anselmo Borges
No DN
Anselmo Borges
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