Um texto inédito de Ângelo Ribau Teixeira
Marinha nunca mais!
Agora teria de arranjar outro emprego. Marinha nunca mais!
Comunicou a sua intenção a amigos, e passados uns tempos foi-lhe oferecido trabalho no escritório de num armazém de mercearias, onde trabalharia até que arranjasse melhor emprego. Foi uma boa experiência pessoal, especialmente pelos contactos com clientes e fornecedores!
Ainda hoje recordo um facto ocorrido quando recebi ordem da gerência da firma para ir fazer um pagamento de fornecimento de feijão a um lavrador local. Era uma quantia avultada naquela época: três mil duzentos e cinquenta escudos. Teria de trazer o dinheiro para minha casa e, á noitinha, iria a sua casa fazer o pagamento, dado que se trabalhava nas terras de sol a sol e não valia a pena ir com o sol no céu porque não encontraria ninguém em casa.
Chegado a casa informei o meu pai da quantia que trazia, a quem se destinava, mas que só à noite poderia ir fazer o pagamento. Recomendou-me cuidado com o dinheiro e que não saísse de casa, não fosse por azar perder alguma nota. E deixei-me ficar por ali até se fazerem horas. Passados uns tempos o meu pai chega-se junto de mim e diz-me baixinho:
— O Ti Zé Maria Branco passou agora com o carro das vacas direito a casa. Deixa-o arrumar o gado, depois vais lá pagar ao homem, mas toma cuidado, ele que conte o dinheiro, não vá o diabo tecê-las…
Assim fiz, e dirigi-me à sua casa era já noite velha. Cheguei, bati à porta “Truz, truz, truz…”
— Quem é? — perguntaram lá de dentro.
— Sou eu, o Toino. O meu patrão…
Então a figura do dono da casa, homem já com uns bons anos contados chega rapidamente junto de mim!
— Fala baixo cas paredes têm oividos. Entra cã gente está a cozelabôla.
Entrei, disse ao que ia e entreguei o dinheiro pedindo que o contasse.
— Não é preciso homem. Tu és filho de gente séria…
Insisti, ele lá contou o dinheiro e verificada a sua exatidão dirigiu-se ao interior da casa onde iria guardar o dinheiro. Eu aguardei.
Só então reparei na dona da casa que, na sua labuta, lá estava na verdade a meter a broa no forno para que este a cozesse.
Entretanto chega o marido.
— Tudo bem Ti Zé Maria? — pergunto.
— Tudo bem, e agradece ao teu patrão ter-me mandado o dinheiro. Assim evitei uma caminhada até ao vosso armazém para ir receber.
Um aperto de mão foi o recibo que ele me passou pela quantia recebida.
Fui para casa aliviado pelo serviço cumprido e pela falta do dinheiro no bolso, cuja responsabilidade tanto me tinha pesado… Chegado, peguei num livro — não num romance, pois agora eram os livros técnicos que mais me interessavam. A contabilidade, especialmente os “lançamentos”. Foi aí que aprendi o princípio básico: “Quem recebe deve, quem entrega tem a haver”. Aquele ou a conta que recebe, deve. Aquele ou a conta que entrega ou paga, tem a haver. Chamaram a isto “partidas dobradas”. Foi esta teoria que me orientou pela vida fora.
Entretanto chega a voz da mãe da casa do forno:
— Pessoal, vamos à ceia que o comer está na mesa…
Todos se juntaram à volta da mesa acomodando-se conforme podiam e toca a comer que já era tarde. Finda a ceia o pessoal dispersou. Uns foram para a cama, outros ainda tinham que passar a vista pelas lições do dia seguinte. Passados uns tempos, a calma naquela casa era absoluta. Fui-me também deitar, descansado.
No dia seguinte, ainda cedo, fui acordado pelo meu pai.
— Levanta-te, que está ali o Ti Zé Maria Branco e quer falar contigo.
Estranhei, mas logo pensei que deveria ser sobre o pagamento do dia anterior. Deve ter ido contar novamente o dinheiro nessa manhã, e alguma nota que lhe caiu no chão, e a conta não estava certa. Levantei-me e fui falar com o homem.
— Bom dia Ti Zé Maria. Então que há?
— Não sei o que se passou. Hoje de manhã fui para contar novamente o dinheiro e não o encontrei. Não sei onde o pus.
— Mas você contou o dinheiro e foi para dentro de casa arrumá-lo, e eu fiquei com a sua esposa que estava a cozer a bola. Você veio e disse-me que estava tudo certo. Até me apertou a mão…
— Eu sei mas agora não sei onde ele está…
— Então vá para casa e procure-o. Não teriam ido os ladrões à sua casa de noite?
— Não me digas isso. Eu meti o dinheiro debaixo do colchão e se alguém lá fosse eu sentia…
— E será que o pôs onde hoje o foi procurar? Que vou eu agora dizer ao meu patrão?
O homem ficou pensativo e disse-me:
— Deixa lá. Eu vou para casa, vou procurar o dinheiro mais descansado e se houver novidade eu venho dizer ao teu pai!
Almocei e enquanto me dirigia ao trabalho ia pensando qual seria a reação do meu patrão ao tomar conhecimento do sucedido. Chegado, contei-lhe o que se havia passado, e ele com todo o traquejo que tinha ganho a lidar com pessoas como este nosso amigo, disse:
— Tenho a certeza de que ele depois de contar o dinheiro e quando foi para dentro de casa, o foi esconder debaixo do colchão. Hoje ao querer contá-lo de novo o foi procurar noutro sítio, embora debaixo do colchão, mas não onde o tinha guardado. Vais ver que quando chegares a casa para comer, ele lá estará à tua espera a dizer que o dinheiro apareceu!
— Oxalá! — Respondi, preocupado com o que se tinha passado, embora tivesse a minha consciência tranquila!
E o tempo parecia que não mais querer passar! Ao notar a minha impaciência, o patrão diz-me:
— Com o nervoso que estás, ainda começas a enganar-te nas contas e depois é pior! Quando entenderes vai-te embora e só vens depois de comer, que de certeza já vens mais descansado…
Nesse dia saí mais cedo uma hora.
Ao abrir a aldraba do portão entrei em casa, e deparei com o Ti Zé Maria a conversar com o meu pai. Ao reparar em mim, dirigiu-se a mim dizendo:
— Desculpa o engano que houve.
— Então o que se passou? — perguntei, já mais aliviado!
— Deixa lá. Quando fui arrumar o dinheiro, pensei que o pus debaixo do colchão, mas como ele estava roto, meti-o dentro do colchão. Só quando mais tarde a minha Maria, foi fazer a cama reparou no colchão roto meteu a mão e foi lá que eu tinha metido o dinheiro, sem dar por isso.
— Valha-me Deus! Felizmente que está tudo resolvido. Ele há cada coisa…!
E lá se foi o Ti Zé Maria embora, nos seus vagares, mãos atrás das costas, ligeiramente inclinado para a frente, como era hábito nas pessoas da sua avançada idade.
Almocei descansado e sai de casa a horas de ir tomar um café ao “Briol” e seguir para o trabalho de modo a chegar lá antes das duas horas, que era a hora de entrada ao serviço, da parte da tarde. O meu patrão recebeu-me com um sorriso comprometido…
— Então como foram as coisas com o Ti Zé Maria?
Contei-lhe o que se tinha passado, que quando cheguei a casa o tinha encontrado a conversar, descansado, com o meu pai, e a explicação que me deu. Aí também ele respirou fundo… Viu-se que também ele estava preocupado, e disse:
— Foi o que eu te tinha dito. Estes “antigos” são assim. O cofre mais seguro para eles é o colchão, pois dormem sobre ele. E de dia ninguém se atreve e entrar em casa, dado que todos os vizinhos se conhecem muito bem e, se algum estranho fosse visto a entrar na casa de um vizinho, não sairia de lá com muita saúde. A gadanha, que com a sua lâmina afiada, tanto serve para cortar erva e junco, como arma de defesa… Ou a enxada, que tanto serve para cavar na terra, como nas costas do estranho, pondo-o a cavar…
Este trocadilho, que achei estranho vindo de quem vinha, deixou-me bem-disposto, e dei início ao trabalho que teria de executar nesse dia. Entrei no escritório, dirigi-me à secretária e abri a gaveta onde no dia anterior tinha deixado uma série de faturas de fornecedores que teria de conferir.
No entanto fazer do colchão da cama, cofre, esta não lembraria ao diabo… E não me saía da cabeça… Ao chegar a casa ainda fui confirmar junto do meu pai, se esse era o hábito das pessoas - esconder o dinheiro no colchão!
— Cada um guarda-o onde pensa que está melhor guardado!
Foi uma resposta que me deixou dúvidas. “Será que o meu pai faz o mesmo?!“ pensei. Bem, aquele assunto estava resolvido. A vida tinha de continuar e deixámos de pensar naquilo. Amanhã era novo dia.
Passaram-se uns tempos naquele patrão, onde ia aprendendo mas sem ganhar grande coisa, até que, sem eu pensar em tal, me surgiu nova oportunidade. Uma noite regressava a casa vindo do namoro, assobiando alegremente, quando ouço uma voz:
— António, para aí que preciso de falar contigo!
Parei e aproximei-me de quem havia chamado por mim. Só então reconheci que era um Gerente da Cooperativa Elétrica lá do sítio, pessoa minha conhecida, pois frequentava o mesmo café que eu, que me interrogou:
— Precisamos de mais um empregado lá na Cooperativa. Estás interessado no lugar?
— Depende… Quanto é que me pagam?
— Com certeza pagamos-te mais do que aquilo que estás a ganhar! Passa amanhã de tarde lá na Cooperativa, que é quando eu lá estou, e falamos sobre isso.
— OK.
No dia seguinte falei com o meu patrão, pedi dispensa da parte da tarde, dizendo-lhe onde ia, e para que efeito.
— Trata da tua vida. Eles podem pagar-te melhor do que eu, e se assim for não olhes para trás. Avisa-me com tempo para eu arranjar um substituto.
Assim fiz e, depois da entrevista, o lugar foi-me oferecido (como o tempo passa! Agora é necessário andar a pedir trabalho e, se se encontra, é preciso uma boa “cunha”, se não nada feito).
Começou assim o Toino uma nova especialidade. A Cooperativa que distribuía eletricidade aos seus sócios iria alterar a distribuição, sendo o consumo pago por escalões, de modo a que quem mais gastava, mais pagaria. Para tal havia uma série de parâmetros a considerar, entre os quais o número de divisões que tinha cada habitação. Logo houve que visitar todas as habitações que tinham eletricidade, a fim de ser registado o número de divisões de cada habitação. Trabalho moroso executado pelo Toino e um outro colega. Levou o seu tempo, já que naquela data havia na Gafanha da Nazaré, cerca de mil residências com instalação elétrica.
A vida agora corria melhor. Ganhava-se pouco (é sempre pouco) mas o esforço era agora mais mental do que físico. Mesmo assim, era uma vida agradável, os gastos — como sempre — de acordo com os ganhos, deixando sempre uma pequena reserva, para o que desse e viesse…
Um dia o Toino, que passeava na festa da freguesia com um amigo, notou num grupo de “moças” que quando passavam por nós se metiam connosco com ar de gozo, e reparou numa, que lhe despertou a atenção, por ser jovem e bonita. Meteu conversa e o namoro começou nesse dia. Ela tinha menos uns três anos do que o Toino mas pareciam talhados um para o outro. Tanto assim que uns tempos depois resolveram casar, logo após o Toino terminar o serviço militar e passar à “peluda” (reserva).
Passado este tempo, foi então resolvida a data do casamento — Julho de 1960. Começou a tratar-se da boda que, na altura, era feita na casa de um dos noivos por ser mais económica e onde todos os membros das duas famílias ajudam. Tudo preparado para meados do mês…
Mas, entretanto, chega a casa do Toino uma notificação da tropa, para se apresentar no R.I.10 em Aveiro, para seguir para Santa Margarida, onde iria tomar parte nas “manobras” militares… O serviço militar começava a atrapalhar a minha vida. Assim, teve de ser atrasada a data do casamento, e lá vai o Toino para Santa Margarida, novamente pegar em armas.
E lá foram passados quinze dias, dormindo e vegetando dentro de tendas de campanha grandes, redondas. Estávamos no mês de Julho e o calor dentro das tendas era abrasador durante o dia. Felizmente que durante o dia havia exercícios militares — ordem unida, crosses e outros exercícios — que nos mantinham fora das tendas. Durante a noite, quando o cansaço não era muito, e a temperatura baixava, eu e um dos meus colegas de tenda (éramos oito) alguns dos quais tinham a mania do desporto, especialmente da luta greco-romana, entretinham-se a praticar esse desporto, que, praticado de acordo com as regras, não provocava mazelas corporais de monta. Os outros entretinham-se como assistência…
O meu adversário preferido era o colega Simões Dias, que tinha um físico proporcional ao meu. Lutava-se um bocado e depois terminava-se a luta sem que houvesse vencido ou vencedor!
E assim se passava o tempo na tropa. Pura perda de tempo. Não sei para que nos serviriam aqueles exercícios, a nós que não éramos profissionais da tropa e na classe dos vinte anos, o que nos obrigavam a fazer era feito todos os dias na vida civil, com exceção daquilo a que chamavam “ordem unida” — mas esta era só para vista e, portanto dispensável, em minha opinião!
Mas quem manda pode, e quem sou eu para, especialmente na tropa ter opinião?! É cumprir e bico calado, caso contrário lá vem o castigo - um reforço, um serviço de plantão às sanitas (só para rebaixar a moral do visado) ou o corte de um fim de semana — eram os mais vulgares. Maldita tropa, pois basta um distintivo em cima do ombro (galões ou até umas simples divisas) e fazem o que lhes dá na real gana. Se quiseres queixar-te do agressor a um superior, terás de pedir autorização a este - coisa que normalmente não era concedida! Coisa da tropa, como disse!
E o tempo de manobras ia passando. Manobras com pessoal de infantaria, que eram mais económicas.
Houve também um exercício com carros de combate. Para mim eram um terror. Avançar ao lado de um “Paton” que pesava quarenta toneladas, com todo aquele ruído das lagartas, logo ao alvorecer, pensando que se uma besta daquelas mudava inopinadamente de direção… Era necessário muito cuidado e olho alerta!
Tanto trabalho, tanta despesa, só por fazermos parte da NATO, organização que nunca nos ajudou e sempre se serviu das nossas posições no planeta em seu proveito. Éramos um grande país — do Minho a Timor — mas esquecemos os ventos da história… Nós, que durante séculos tínhamos feito esses ventos soprar a nosso favor, esquecemo-nos das riquezas que tínhamos, espalhadas por vários continentes, pelo mundo. Nós, um país pequeno mas de grandes feitos, que começou a ser olhado pelas grandes potências europeias, que tinham já sido expulsas das suas possessões, pelo modo como trataram as populações autóctones pouco de acordo com os direitos humanos.
Até os grandes Estados Unidos da América, começaram a olhar-nos de revés. Eles que são donos de um imenso território - porque exterminaram os nativos até quase acabarem com eles, deixando apenas meia dúzia, que mantém em reservas, como animais selvagens, para deleite dos outros, os que se consideram verdadeiramente americanos!
Onde estão os peles-vermelhas e outras raças nativas? Foram passados pelas armas, uns, e outros morreram por moléstias importadas com os emigrantes doentes, tal como a peste e outras, a que os autóctones não resistiram.
E Portugal continuava lá de pedra e cal…
Faz-me isto recordar a primeira intervenção de Churchill no Parlamento Inglês.
Terminada a sessão, pergunta a um amigo de seu pai, também ele membro de parlamento, sobre a sua atuação.
— Então, que tal?
— Mau, muito, mau. Foi a resposta.
— Mas…
— Para a primeira vez que falaste no Parlamento foste brilhante.
— …
— Foste de tal maneira brilhante, que os teus pares e adversários políticos nunca te perdoarão. Por isso o teu brilhantismo foi muito mau para o teu futuro político…
Portugal foi brilhante com a descoberta de novos mundos. Depois ficou orgulhosamente só.
Havia uma solução escrita por um dos mais brilhantes militares que lutaram no Ultramar em “Portugal e o Futuro”. Mas os brilhantes “Capitães de Abril” não o admitiram. Os Oficiais Milicianos estavam a ser promovidos e a passar-lhes à frente. E Isso os Capitães de Abril, não podiam admitir. E fizeram o 25 de Abril…
Ângelo Ribau Teixeira, junho de 2012