terça-feira, 29 de outubro de 2013

O Marnoto Gafanhão — 14

Um texto inédito do Ângelo Ribau


O tempo já não era quente e estava-se bem na cama


Era Outono, o tempo já não era quente e estava-se bem na cama. Nessa noite o tempo estava mesmo frescote! E o tempo ia passando. Passou o Outono, chegou o Inverno.
Era agradável a frequência das aulas. Menos as deslocações, com os ventos fortes acompanhados de chuvas. As roupas impermeáveis que tínhamos de usar dificultavam os movimentos. Para o frio que por vezes fazia, bastava usar roupas mais quentes.
Entretanto chegou o tempo da apanha do moliço, com todos os problemas que acarreta: o frio e o gelo com todas as suas consequências. Mas o Toino estava mais crescido, com mais força, e isso facilitava-lhe a execução do trabalho. Só lhe fazia doer o coração era ver a estudantada passar na estrada, bem agasalhada, passando alegremente a caminho de Aveiro e ele ali atolado na lama, cheio de frio, zurrando (empurrando) os montes de moliço em direção à estrada! Mas este tempo também iria acabar para ele. Para isso, depois de trabalhar, ia estudar, e como quem corre por gosto não cansa, ao dia sucedia-se a noite de estudo, de esperança num futuro melhor. 
Passou o inverno, veio a primavera e o verão.
Veio o serviço das marinhas, o mesmo trabalho, as mesmas labutas. Preparar a marinha, “pô-la” a sal quando estiver preparada e depois colher o sal. Os quentes dias do verão com o vento nordeste que assava a pele, ou a fresca nortada que nos aliviava daquele forno, daqueles quentes dias do nordeste, que custavam a passar. Mas iam passando…



Com o verão os dias cresceram. A entrada nas aulas era normalmente as sete horas. Era ainda meio da tarde para o pessoal que trabalhava nas terras, de maneira que nem sempre a mãe do Toino tinha tempo de lhe preparar uma merenda para ele comer antes de ir para a Escola Comercial. Quando isso sucedia, o Toino ao chegar a casa, encontrava em cima da mesa da casa do forno uma moeda de vinte e cinco tostões para levar e comer qual que coisa antes de ir para as aulas. Era sabido: pedalar mais rápido para ter mais uns minutos. Entrava em Aveiro e no segundo quarteirão à direita ficava a loja da “Ti Camila” (à esquerda era um canal da ria). O Toino encostava a bicicleta ao passeio, e vá de entrar. 
— Ti Camila! Uma isca dentro de um pão e um copo pequeno de branco, se faz favor! Era a receita! E que bem que me sabia (pela fome ou pela vontade de comer que eu levava!) Dali à Escola era um pulo. Eu não queria faltar à primeira aula que naquele dia era sobre História Universal e o assunto, Médio Oriente. Lá estará o Dr. David Cristo conversando com os seus alunos (era este o seu modo de ensinar) e nós que já éramos uns homenzinhos, gostávamos deste modo do nosso professor: ouvíamos, fazíamos perguntas que nunca ficavam sem resposta, e assim se passava uma hora de aula, sem que déssemos por isso! Rapidamente chegava a hora de tocar a campainha, anunciando um intervalo de dez minutos.
E depois vinha uma aula, e mais outra, e mais outra. Normalmente eram quatro por dia. Cerca das vinte e três horas era o regresso para quem tinha todas as aulas.
E lá vínhamos em bando a caminho da Gafanha, o que nem sempre era pacífico: uma roda que se furava, um raio que partia ou um pneu que, dada a sua idade, rebentava, não eram problemas de maior!
O Toino, dado o seu físico avantajado, pegou na bicicleta avariada ao ombro, montou na sua e “bota para a Gafanha”. Para o Zé, que tinha ficado a pé, havia que arranjar meio de transporte: foram apalpadas todas as rodas dos restantes elementos do grupo. As que se encontravam em melhor estado (mais cheias) eram as da bicicleta do Eduardo, de maneira que foi ele que teve de trazer o Zé no quadro da sua bicicleta. E mais um problema que foi resolvido pelo grupo.
O Tempo ia passando, até que chegou a altura dos exames.
Era verão e o Toino era dispensado do serviço na marinha para poder estudar e rever as matérias que apareceriam nos exames. Nem mesmo assim tinha o tempo totalmente livre para estudar pois era tempo da rega do milho, e a mãe, que andava no meio do milheiral a orientar a rega (fecha aqui a caneja, abre-a mais alem…) não o dispensava de “tomar conta da vaca”, para que ela não parasse de andar à volta do poço e a água corresse normalmente até ao destino que a mãe lhe dava lá longe no meio do milheiral! Para que o animal não visse se estava alguém por perto era-lhe aplicada, no focinho, uma “careta” que, tapando-lhe os olhos, lhe evitava a visão. Então usa-se a técnico do assobio (assobia-se baixinho como se estivesse longe e dá-se uma pequena pancada no animal). Esta técnica é seguida várias vezes, até que a vaca ouve o assobio, pensa que alguém está perto dela, e não para…
Esta técnica era a seguida pelo Toino que, de livro na mão, ia estudando e ouvindo o travão do “engenho” que no seu tac-tac ia dando o ritmo do andamento do animal que rodava à volta do poço…
Ao contar esta técnica a alguns colegas ficou conhecido, em ar de gozo, pelo “Toca à vaca”… Enfim…
Os exames eram feitos e o Toino lá ia passando, com maior ou menor dificuldade. Mas um dia lembrou-se: “por este andar vem aí a tropa e, se eu não tiver o curso completo, vou “as sortes” e assento praça como soldado… E isso, eu não quero…
Eram cinco anos, já não dava tempo! Só havia uma solução: fazer o exame do primeiro ciclo dos liceus, como aluno externo!”
E assim fez. Além, no ano seguinte, dos exames na Comercial, fez o primeiro ciclo dos liceus. Trabalhos a dobrar mas o Toino lá passou! Na altura ficou satisfeito…
Sabia ele que com as habilitações literárias com que ficou, iria para o curso de milicianos. “Nada mau!” pensou na altura. Sairia da tropa como Furriel Miliciano. Tudo na altura parecia de acordo com o que tinha programado.
Assentou praça no R.I. nº 10 em Aveiro, fez a recruta, foi para Tavira onde fez o Curso de Sargentos Milicianos no CSM e regressou à unidade de origem como Cabo Miliciano, tendo aí dado uma recruta e participado nas manobras militares que anualmente se realizavam em Santa Margarida. Passou à disponibilidade (peluda).

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