Um texto póstumo de Ângelo Ribau
“Valha-nos Deus, que já não será sem tempo”
“Valha-nos Deus, que já não será sem tempo”, pensava eu, “ao menos aquelas temperaturas tórridas, a que não faltava sequer a falta de vento irão acabar. Oxalá o meu pai também acerte desta vez!”
Assim foi. Passados que foram cerca de dois dias, logo se notou pela manhã a temperatura a refrescar. O dia já foi menos quente e pela tarde, ao regressarmos a casa, chegados à “boca” do Esteiro dos Frades, foi dada ordem de içar a vela, que puxada pela “ustaga” se fez chegar ao cimo do mastro. Orientada pela escota de acordo com a direção do vento, lá ia a bateira em direção ao seu ancoradouro, junto à seca do Egas. O marnoto, sentado no “cagarete”, governava a bateira e ia orientando a vela, puxando ou largando a escota, que era presa na borda de sotavento. Com vento fresco a viagem era rápida e o esforço praticamente nulo. Era só içar a vela e arreá-la ao chegar ao ancoradouro.
Com a falta de temperaturas muito elevadas a produção de sal ia lentamente baixando. Mas, mesmo assim, trabalho nunca faltava. Os tabuleiros onde o sal escorria, para depois ser transportado para o monte, os “machos” por onde passávamos com as canastras cheias de sal, não eram mais lama dura. O sal tinha-se entranhado na lama e aqueles locais eram autênticas máquinas de lixar as solas dos pés. Só quem andou naquela vida pode fazer uma ideia correta dos sacrifícios que o pessoal das marinhas passava.
Estávamos em Agosto, o primeiro mês de “Inverno” para as marinhas, palavra de marnoto, dado que começavam os primeiros nevoeiros e a produção de sal diminuía a olhos vistos!
— Hoje trouxe uns sacos para levar sal para casa — Diz o marnoto — Quando chegar o Inverno tenho de ter sal para salgar o porco, quando for a matadela. Logo não vimos para o Egas. Vamos para a Cambeia, que tenho lá a minha mulher à espera com o carro dos bois.
E assim foi. Terminados os trabalhos do dia, foram enchidos os sacos e transportados em padiola para a bateira.
Depois de arrumadas as alfaias no palheiro, fechado este e arrumadas as chaves, demos início ao regresso a casa. O vento era fraco, mas mesmo assim içámos a vela, e lá viemos desta vez em direção ao Esteiro do Oudinot, por onde chegaríamos à Cambeia. Mais adiante, no Jardim do Oudinot, as árvores altas impediam o vento de chegar à vela, pelo que a solução era os moços saltarem para terra e com uma corda (a cirga), puxarem eles a bateira pelo Esteiro fora, que tinha cerca de dois quilómetros de comprimento, enquanto iam conversando.
O marnoto, sentado no cagarete, ao leme, ia governando a bateira, para que não fosse contra as estacas de cimento ou se desviasse demasiado para o meio do esteiro.
Um moço, já com idade, pequeno de físico mas rijo de nervos, pele tisnada pelo sol e também pelo vinho que diariamente ingeria, avistou um grupo de turistas sentados debaixo de uma árvore, no jardim do Oudinot, a merendarem, refastelados…
— Querem ver? — Pergunta o Gandarinho.
— ???
— Anda, puxa rápido, mais depressa… mais depressa senão o peixe foge todo…
E nós, toca a puxar, cada vez mais rápido, feitos parvos, sem saber o que ia naquela cabeça…
As senhoras do grupo de turistas levantaram-se e pediram para nós lhe vendermos o peixe que estávamos a pescar, que era fresquinho, e que elas ali mesmo o assariam para o seu pessoal. Mas o Gandarinho era só:
— Puxa, puxa…
O marnoto lá do seu cagarete, ainda intimou:
— Ó João, não é preciso tanta pressa!
Mas qual quê! O Gandarinho era só:
— Puxa, puxa…
Mais adiante, quando já não podia ser ouvido pelos turistas, o Gandarinho solta tamanha gargalhada, que o deixou da cor da pele de um tomate…
— Vês? Com papas e bolos se enganam os tolos… Aqueles viram uma bateira e logo pensaram que ia a pescar!
E isto, para ele, foi uma vitória… Só os “ricos” gozavam férias! E aqueles ali refastelados eram, para o Gandarinho, ricos…
Entretanto fomos andando e chegámos ao nosso destino. Agora era só passar por baixo de uma das “portas de água”, para poente, com cuidado, que elas eram de pedra. Passámos! Lá estava o carro de bois à nossa espera. Descarregámos o sal e o carro seguiu para casa. Passámos novamente por baixo das portas de água, agora para nascente onde se encontrava o “moirão” a que íamos amarrar a bateira. Lá chegados, passámos o cadeado à volta do moirão, e já nos preparávamos para regressar a casa, quando aparece o Cabo de Mar (autoridade marítima) com poderes para tal, a perguntar pela licença do moirão! O meu pai foi à proa da bateira e mostrou-lhe a licença.
— Não - diz o Cabo de Mar — Esta é a do moirão localizado junto do Egas. Este moirão precisa de outra licença…
— Mau! — diz o meu pai zangado — A lei mudou?
— Mudou sim senhor — diz a autoridade — e você devia saber! Para não ser multado tem de apresentar a licença dentro de oito dias no “Posto”.
— Sim senhor. Assim farei!
— Cada moirão, cada licença, sim senhor - dizia o marnoto, entre dentes - Mesmo sendo para a mesma embarcação… Só me faltava esta! - Ia resmungando… - Faltar um dia à marinha por causa da porra de uma licença do moirão!
E durante o resto da tarde, não falava noutra coisa…
À noite, à “ceia”, ele teve uma ideia!
— Oh Toino! Tu amanhã não vais à marinha. Pegas na bicicleta e vais a Aveiro à Capitania tratar da licença do moirão, para a Cambeia. És capaz disso?
— Sou sim senhor! — Respondi eu, pensando no dia seguinte, em que não precisava de ir à marinha.
— Então ficamos assim: a Capitania abre às nove horas, tu levas os documentos da bateira, que o registo é preciso. Vais lá de manhã e terás de lá voltar à tarde que “eles” levam tempo a passar a licença. Perguntas quanto ela custa e à tarde pedes dinheiro à tua mãe e vais lá, pagas e levantas a licença!
Assim foi. Tratei de tudo como me foi ordenado e à tarde regressei, com a licença no bolso. Nem as duas viagens a Aveiro de bicicleta me custaram a fazer! Teria sido pior se tivesse ido à marinha naquele dia e tivesse andado a “alombar” com a canastra à cabeça… Antes dos oito dias, a licença do moirão da Cambeia foi apresentada no posto ao Cabo de Mar!
A safra ia adiantada. Qualquer dia terminaria! Começavam os tempos a refrescar e a produção de sal ia diminuindo. O marnoto até já tinha encomendado a “bajunça” para ir cobrindo os montes de sal maiores, era só ela chegar… Os montes eram “achegados” (alisados). O marnoto subia para o curuto por uma escada e de lá, com uma pá de cabo muito comprido e um rasoilo, ia puxando o sal para cima, enquanto os moços, da eira e de pá em punho, o iam baldeando, da saia para cima, de modo a que o cone de sal ficasse liso. Qualquer quebra ou cova na linha do monte, mesmo com o sal coberto, provocaria infiltrações da chuva, dando lugar a furos negros que só seriam notados quando o sal dali fosse retirado.
Só depois todo o monte era batido com pás, ficando todo liso, e com a inclinação necessária e suficiente para que a bajunça não escorregasse por ele abaixo! Chegada a bajunça, eram então cobertos com ela, em camadas sucessivas, seguras com punhados de lama dura e empastados a cerca de trinta centímetros uns dos outros, em cada carreira de bajunça. No curuto, a lama dura cobria a sua totalidade.
Enquanto isto, tínhamos de ir aproveitando o sal que a marinha produzia e que era transportado para outras eiras, preparadas ao lado dos montes de sal que estavam a ser cobertos.
Estávamos em fins de Agosto quando o vento Nordeste se lembrou de nos vir fazer uma visita!
— Humm… — Diz o marnoto entre dentes — Isto não é tempo deste tempo! Cheira-me a esturro…
— Mas pai — diz o Toino — as “pombinhas” lá estão por cima da serra…
—Toca a trabalhar que amanhã vai haver mais serviço do que hoje!
E vieram mais dois dias de nordeste, menos quentes do que os anteriores que tinham vindo em Julho, mas mesmo assim ainda dias quentes!
Depois surgiu o tal cheiro a esturro… Ao terceiro dia, logo pela manhã apareceram nuvens sobre as serras, mas de cor escura, indício de trovoada, segundo o marnoto. Logo havia que tomar decisões:
— Vamos rer a mão que era para rer hoje e tirar o sal para cima de eira — diz o marnoto — que se o tempo piorar ainda temos de rer outra mão.
E não é que, mal acabámos de tirar o sal para a eira e lavadas as canastras, as nuvens negras começaram a crescer, da serra para o lado do mar? Mas como…? O vento soprava com uma brisa fresca do mar para a serra!
— O vento cá por baixo é fresco e por isso não sobe, mas corre para terra, obrigando o ar quente da serra a subir — por isso as nuvens que trazem chuva — que correm ao que parece, contra o vento, porque nós cá em baixo só sentimos o vento que corre do mar para terra, mas durante a próxima noite teremos as nuvens em cima das marinhas. Chover ou não eis a questão! Vamos rer a mão que era para rer amanhã, porque se chover de noite o sal “vai-se todo embora”!- E assim terminou o marnoto a sua explicação.
Voltámos a pegar nas alfaias e toca a voltar ao trabalho. Passadas umas duas horas estava o serviço terminado. A mão tinha sido rida, o sal bem puxado para cima do tabuleiro, não fosse chover muito e o sal ser comido pela chuva!
Nessa noite choveu bem. No dia seguinte não sabíamos o que iríamos encontrar na marinha. Possivelmente as lamas terão escorrido dos tabuleiros e dos machos para os meios, que terão ficado sujos com essas lamas. Amanhã se verá!
O dia acordou com sol. Foi uma trovoada que só por onde “passou” terá provocado mais estragos. Mas o dia estava lindo ao chegar à nossa marinha. Já se conversava entre os marnotos que, se a chuva tivesse feito muitos estragos, não valeria a pena continuar a trabalhar nas marinhas. Tudo dependia de como teriam ficado! Chegados, verificou-se o esperado. A chuva na nossa marinha tinha causado estragos. Os meios onde se fabricava o sal estavam escuros, cor provocada pela lama escorrida dos machos e dos tabuleiros, quando na época da recolha do sal estão brancos.
— Vamos tirar o sal que está no tabuleiro, mas primeiro vamos por areia por onde temos de passar, não vá haver uma escorregadela e alguém partir uma perna!
Assim foi. Tirámos o sal para cima da eira, lavámos as canastras e os punhos, que foram postos a secar.
O sol estava radioso e o marnoto e o moço mais velho trocavam impressões:
— Humm… se o tempo continuar assim, bom… temos de fazer uma limpeza à marinha para continuar a fazer sal.
E se assim o disse melhor o fez.
Depois do jantar (ao meio dia) ele e o moço mais velho pegam nos ugalhos e toca de ugalhar a “agua” (na altura já não era moira, já que a chuva a tinha adocicado), das partes de baixo para as partes de cima, passando-a por cima do tabuleiro do meio. Os moços iam-na empurrando com galhos para junto do tabuleiro do meio, donde era ugalhada por quem sabia, para as partes de cima.
Esta água ficava a “apoitar” pelo menos um dia, para que a lama provocada pela chuva acamasse no fundo do meio. Depois era aberto o tabuleiro do meio e a água correria novamente para as partes de baixo onde, pela ação do calor do sol, se tornaria novamente em moira, dando origem ao sal!