António Marcelino |
«O que de mais grave se passa hoje em comunidades amorfas e a desertificar, é a incoerência de muitos, sempre contrária às exigências evangélicas e à verdade que a fé não dispensa. A incoerência gera indiferença perante o essencial e o importante, e esta tornou-se a maior calamidade, social e religiosa, da atualidade. O indiferente, nem procura, nem acolhe. Cheio de si, dispensa Deus e os outros e nem se preocupa em perceber os sinais da sua presença. Para o indiferente só ele próprio conta.
Vemos, entretanto, gente dita religiosamente indiferente, atenta às palavras e gestos do papa Francisco. Isto quererá dizer que quando se toca o coração e se expressa verdade e coerência, a indiferença entra em solavancos. Quererá dizer ainda que um estado de total indiferença não é coisa normal numa pessoa séria e equilibrada.»
António Marcelino
Desmancha-prazeres históricos
Poucos saberão o que disse Francisco de Assis quando despiu as suas vestes ricas para viver segundo o Evangelho. O gesto, oito séculos depois, aí está com seu o significado e interpelação. Igual foi o gesto de Cristo quando, inesperadamente, se joelhou à frente dos seus apóstolos, lhes lavou os pés e recomendou que fizessem o mesmo para que tal gesto se tornasse normal para todos os seus seguidores. Atitudes de verdade e de compromisso em que o que se anuncia está de harmonia com o que se vive.
O que de mais grave se passa hoje em comunidades amorfas e a desertificar, é a incoerência de muitos, sempre contrária às exigências evangélicas e à verdade que a fé não dispensa. A incoerência gera indiferença perante o essencial e o importante, e esta tornou-se a maior calamidade, social e religiosa, da atualidade. O indiferente, nem procura, nem acolhe. Cheio de si, dispensa Deus e os outros e nem se preocupa em perceber os sinais da sua presença. Para o indiferente só ele próprio conta.
Vemos, entretanto, gente dita religiosamente indiferente, atenta às palavras e gestos do papa Francisco. Isto quererá dizer que quando se toca o coração e se expressa verdade e coerência, a indiferença entra em solavancos. Quererá dizer ainda que um estado de total indiferença não é coisa normal numa pessoa séria e equilibrada.
A Francisco de Assis não bastou pregar a pobreza, com eloquência e entusiasmo. Era preciso tornar-se pobre de modo inteligível. O seu bispo não entendeu. O papa também não. Tinham outros horizontes de vida e de poder, estranhos ao Evangelho de Cristo. Ficariam descansados não dando atenção às ideias de um louco, assinando de cruz às suas propostas tolas. Os loucos passam com o tempo e pensavam eles que o rumo da história são os chefes a determiná-lo, não os sonhadores com seus gestos estranhos…
Séculos passados, Francisco, o pobre, continua a ser um símbolo vivo. Não se lhe pode passar ao lado. Assim o entendeu o novo papa. Na linha bíblica é o pobre que nos evangeliza, porque na sua vida ele se confronta com o essencial. Deste modo, põe a descoberto os apegos que impedem “ser”, aos distraídos que deixaram que o coração se tornasse dependente do que não sacia e inebriado por desejos de fumo.
Li o incómodo elucidativo de um novo cardeal que acabava de o ser. Depois de em cerimónia solene ter ouvido de Paulo VI a recomendação de “ser forte a ponto de dar a vida pelo aumento da fé cristã, a paz e a harmonia no seio do Povo de Deus, de lutar pela liberdade e expansão da Igreja…” foi dali engalanar-se com a púrpura cardinalícia e receber parabéns ocos de circunstância, em vez de palavras de estímulo à fidelidade. Uma contradição escandalosa entre a cerimónia com o papa e a festa com os amigos. Acordou, sentiu-se mal e decidiu dar outro rumo à sua vida. E assim fez.
Há anos, João Paulo II com um gesto, para alguns incómodo e louco, convocou para Assis católicos, ortodoxos e protestantes, judeus e muçulmanos, hindus e budistas, ateus e agnósticos para dialogarem com ele e entre si e colaborarem numa causa que tinha a ver com todos: a paz e a defesa da natureza. Não havia para o encontro lugar mais significativo que Assis. Os poderes eclesiásticos romanos escandalizaram-se com a decisão do Papa. “Não era preciso ir tão longe… O Papa fala aos outros, não precisa de ouvir os outros… Muito menos gente de outras religiões, que não respeitava e até atacava a Igreja…” Estes críticos não tinham entendido os passos do Evangelho e do Vaticano II. João Paulo II, como resposta, repetiu o encontro.
Ainda bem que vão surgindo, ao longo da história, uns tantos desmancha-prazeres, comprometidos com o essencial, para os quais a coerência não é arremedo, nem espetáculo. Aí está mais um destes: o papa Francisco.
António Marcelino