Os três estádios da existência
e o combate da fé
Sören Kierkegaard |
«A fé e o amor são levados ao paroxismo. Luterano, foi crítico ácido da Igreja oficial dinamarquesa: "Na sumptuosa catedral, eis que aparece o Reverendíssimo e Venerabilíssimo pregador da Corte, o eleito do grande mundo, e aparece perante um círculo de uma elite e prega com emoção sobre este texto que ele mesmo escolheu: "Deus escolheu o que é humilde e desprezado no mundo" - e ninguém se põe a rir." Mas, já à beira da morte, foi-lhe perguntado se acreditava em Jesus Cristo. E ele (cito de cor): "Sim. Em quem haveria de acreditar nesta hora?"»
Anselmo Borges
Deixou uma obra filosófica importante, um dos fundamentos das posteriores filosofias da existência - é dele o adjectivo "existencial". Refiro-me a Sören Kierkegaard, cujo segundo centenário se celebra este ano - nasceu em Copenhaga em 1813. O que lhe interessava não era o saber na sua pureza teórica, mas como agir e viver. Escreveu: "O que no fundo me falta é ver claro em mim mesmo, saber o que hei-de fazer e não o que hei-de conhecer, excepto na medida em que o conhecimento deve preceder a acção. Trata-se de compreender o meu destino, descobrir aquilo que Deus no fundo quer de mim, encontrar uma verdade que seja tal para mim, encontrar a ideia pela qual possa viver e morrer." Contra Hegel, cujo eco ouviu em Berlim, argumentou que não há um sistema da existência e do indivíduo. Ora, o decisivo é o indivíduo e a sua interioridade, a liberdade, a possibilidade, a angústia, o desespero, a salvação, numa decisão intransferível. Como dirá Unamuno, "eu sou único e não há outro eu no mundo", como também não há outro tu ou outro ele/ela. É célebre a sua definição da existência humana como "uma relação que se relaciona consigo mesma ou, por outras palavras, como o que na relação faz com que a relação se relacione consigo mesma". É decisiva esta auto-referência, que é, inevitavelmente, hetero-referente. De facto, "uma relação que se relaciona consigo mesma - portanto, um eu -, tem que ter-se posto a si mesma ou ter sido posta por outro". Ora, a existência humana não se põe a si mesma e, por isso, a auto-relação é, necessariamente, relação a outro, o autor da relação, Deus, numa relação única de "comunicação existencial". A existência está colocada perante três possibilidades fundamentais, a que chamou "estádios", não no sentido cronológico e lógico de passagem sucessiva de um a outro, mas de atitudes ou modos de existência. Seja como for, a passagem de um a outro não se dá dialecticamente, mas por um "salto" que transforma radicalmente a existência. O estádio estético (do grego aisthesis, sensação, sensibilidade) tem a sua figura no Don Juan e caracteriza-se pela busca saltitante do gozo imediato das sensações, no instante fugidio da conquista, de prazer em prazer. Esta via da repetição hedonista desemboca no sentimento de frustração e melancolia e pode levar ao desespero. Pode dar-se então o salto para o estádio ético, empenhando a liberdade própria e assumindo a seriedade da existência, no cumprimento do dever e da responsabilidade, concretamente na relação estável e fiel com o outro no casamento. Mas, aqui, o indivíduo ainda está sob a lei geral. Só no estádio religioso o indivíduo se encontra verdadeiramente a si próprio e à sua singularidade no "abandono mais absoluto" a Deus, o totalmente Outro. O religioso é "o sério, e o sério é: o único". "Tornar-se cristão é a coisa mais decisiva que um homem pode tornar-se", pois resolve o seu "paradoxo": no tempo, decidir e encontrar a eternidade. A fé tem o seu modelo em Abraão a quem Deus mandou sacrificar o filho. Segundo a exegese, o que o texto diz é que Deus põe termo aos sacrifícios humanos. Aliás, Kant, confrontado com o tema, escreveu que Abraão deveria ter dito a Deus que não era seguro que a voz que ouvia fosse de Deus, mas era certo que não devia matar. Kierkegaard, porém, coloca-se noutro plano: o do combate da fé, numa luta de vida e de morte com Deus. Deus põe à prova a fé de Abraão e o seu amor, quer ver se realmente O ama. Abraão, por sua vez, põe também Deus à prova: dispõe-se a matar o filho, mas, se Deus não intervier, só pode tornar-se ateu. Deus interveio. A fé e o amor são levados ao paroxismo. Luterano, foi crítico ácido da Igreja oficial dinamarquesa: "Na sumptuosa catedral, eis que aparece o Reverendíssimo e Venerabilíssimo pregador da Corte, o eleito do grande mundo, e aparece perante um círculo de uma elite e prega com emoção sobre este texto que ele mesmo escolheu: "Deus escolheu o que é humilde e desprezado no mundo" - e ninguém se põe a rir." Mas, já à beira da morte, foi-lhe perguntado se acreditava em Jesus Cristo. E ele (cito de cor): "Sim. Em quem haveria de acreditar nesta hora?"