Cristãos à escala universal?
"Numa Europa politicamente baralhada, eticamente empobrecida, incapaz de horizontes novos, o mundo voltou a olhar para Roma, dada a esperança que daí parece vir a favor dos direitos humanos fundamentais, da dignificação e humanização das relações pessoais e sociais, da colaboração séria em prol da verdade, da justiça e da paz."
António Marcelino
Uma das interrogações a fazer hoje é a de saber até que ponto a fé cristã pode influir na humanidade atual com as características da mesma. Quando tudo se comandava a partir da Europa, a pergunta não teria grande sentido, porque o cristianismo dominava. Hoje, com uma Europa que foi perdendo a sua hegemonia e a sua força e se discute mesmo o grau de influência que lhe resta, a pergunta sobre o sentido da fé deve fazer-se, quanto antes, com abertura e sem medo.
Há uma preocupação ecuménica no campo religioso, e por ela se tem ficado a Igreja. Há ainda uma dimensão de universalidade plural de ordem humana, na qual a Igreja não teve intervenção, mas a que não se pode alhear. Esta deve-se à abolição das fronteiras provocada pelos fluxos migratórios, à globalização dos problemas, aos direitos humanos reconhecidos, à difusão de uma cultura laica, e, como meio de fácil acesso, às modernas tecnologias da comunicação, que fizeram do mundo uma “aldeia global”, como já se previa há décadas.
A Igreja, durante séculos, deixou de correr riscos especiais por força da missão. Foi perdendo a sua força mais profunda e limitou-se a controlar e a impedir moções e atitudes que a punham em causa ou contrariavam os seus objetivos. Esqueceu-se que o Evangelho a precede, no tempo e nas suas opções apostólicas. O cristão praticante do culto que professa, de modo acrítico, a fé que lhe é proposta não se pode confundir, e menos ainda identificar, com o cristão que, a exemplo de Cristo e no Seu seguimento, joga a sua vida, de modo claro e consciente, para que a Vida de Deus chegue a todos, quem quer que sejam e onde quer que se encontrem. A dinâmica missionária nasce do Evangelho e traduz a aceitação do mandato de Cristo. Não nasce da instituição eclesial, também ela enviada, mas durante séculos mais preocupada consigo e sua imagem que com a missão que lhe fora confiada. Perdeu, assim, em favor de alguns, o ardor e a inquietação que expressam a urgência missionária.
Ser cristão à escala universal exige formação, abertura e respeito. Nada sacrificando do que é essencial à sua fé, o cristão inserido na história do cristianismo carrega, consigo e com os demais, o encargo de ser testemunha de Cristo, até aos confins da terra e do tempo. “Só o cristianismo, pela sua originalidade e história, será capaz de dar sentido e consistência e levar a cabo a integração interna e externa da humanidade.” Diz Walter Kasper que é este o caminho para tocar o novo ecumenismo.
Não o fará a partir de fora, mas da abertura ao bem e à verdade que existe nas pessoas concretas, que procuram, noutros caminhos, sentido para a sua vida. Estas pessoas estão perto de nós, em nossa casa ou no trabalho, convivem connosco e esperam dos crentes respeito, abertura e apreço.
O cardeal Martini, para abrir caminhos novos no diálogo com não crentes — alguns deles denegriam com suspeitas os seus propósitos — interrogava-se sobre o “que crê, quem não crê”. Era maneira de lançar pontes, fazer propostas, manifestar, para com todos, sentimentos evangélicos, positivos e fraternos. Quem não é da Igreja não quer dizer que não seja de Deus e não procure ser fiel a valores divinos que leva consigo, mesmo que não os julgue tais.
Há ainda muito farisaísmo, muitos rótulos intocáveis, muita discriminação inaceitável, muita dificuldade de conversão a um novo tipo de linguagem e de relações mútuas. Agora que o Papa Francisco rompeu o cerco e derrubou muros, historicamente considerados como intocáveis, não há espaço para cristãos fechados, frente a um mundo irreversivelmente aberto. Não há espaço para a Igreja e suas comunidades gastarem tempo e meios em coisas passageiras, mas não inconsequentes pela imagem que deixam e os objetivos que procuram.
Numa Europa politicamente baralhada, eticamente empobrecida, incapaz de horizontes novos, o mundo voltou a olhar para Roma, dada a esperança que daí parece vir a favor dos direitos humanos fundamentais, da dignificação e humanização das relações pessoais e sociais, da colaboração séria em prol da verdade, da justiça e da paz.
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