Interpelação do Papa à Igreja e toda a hierarquia
António Marcelino António Marcelino |
Com toda aquela corte de gente a rodeá-lo, cardeais, bispos, monsenhores e padres a sonhar carreira na Cúria Romana, que continuam com as suas vestes coloridas e vistosas, e a não quererem mudar, como se sentirá o Papa Francisco? Com o desconforto de quem espera? Com a normal compreensão e paciência de quem respeita? Mais voltado para mostrar que para falar? Todas as hipóteses se podem formular. Mas a pergunta é pertinente, dado que ele optou, desde o primeiro momento, pela simplicidade no viver, no vestir, no calçar, no comunicar, no relacionar-se, como que a querer dizer que coisas supérfluas e vistosas que choquem não são com ele e a sua opção é a simplicidade e a disponibilidade de quem serve.
Há uma certa tendência histórica na Igreja de perpetuar costumes e tradições alheios ao Evangelho, fruto de mentalidades que traduzem por essa via, a importância do cargo e o prestígio da pessoa. Deixem-me dar um exemplo. Em 1975, já se vivia o após Concílio, tive de ver a lista tradicional para comprar as vestes episcopais. Recusei algumas que nunca ou só raramente vestiria. Quem vendia achou esquisita a minha opção. E a capa magna vermelha, por exemplo, ficou à espera de outro comprador. Uma vez, ainda em Lisboa exigiram-ma, para uma cerimónia “soleníssima” na Universidade Católica. Logo houve quem ma emprestasse. Tratava-se de ato a que não me podia, a meu gosto, furtar. O Cardeal Patriarca queria a presença de todos os seus bispos auxiliares e tinha de ser com capa vermelha, como mandava o protocolo.
Não obstante a opção muito clara, ainda veio na remessa uma coisa que nunca usei, e que nunca me fez falta. Foi o barrete eclesiástico vermelho. O báculo é um pau com uma pequena incrustação cerâmica; a cruz peitoral, de igual matéria e jeito; de ouro só o anel da ordenação, oferta do meu bispo, e que raramente uso. Um, muito simples, de prata, foi oferta dos meus sobrinhos. É esse que uso habitualmente.
Armas episcopais, a que propósito, se as dioceses têm as suas? Outros bispos de então seguiram igual caminho, recomendado pelo espírito do Vaticano II. Não sou melhor, mas era preciso tomar o Concílio a sério.
O Papa Francisco disse, logo ao começar, que a “sua” Igreja era pobre e dos pobres. Aos pobres não se pregam sermões, nem se fazem conferências. Vai-se a eles com simplicidade, sem fotógrafos nem batedores, sem jornalistas nem mirones. Ouvem-se, ajudam-se, respeitam-se, dá-se-lhes coragem, faz-se tudo o que podemos para superar as suas dificuldades, de modo a recobrarem o sentido da vida e a alegria de se verem vivos e amados. Os pobres não se sentem bem, nem estão à vontade, quando visitados de um modo que não se pareça com eles. Quem serve adapta-se. Foi o que fez o Papa. Não anunciou propósitos, não deu ordens, fez gestos que de que todos entenderam o sentido e o alcance das suas opções. E o mundo, vivo e atento, os crentes e os afastados, todos os famintos de verdade e da autenticidade, ansiosos por ver na Igreja os traços de Jesus Cristo, entendem, ganham ânimo e agradecem.
Igreja pobre e dos pobres não é frase inventada pelo Papa Francisco. Ele já vivia nessa tónica, antes de ser eleito. Na América Latina, continente de muita pobreza, a frase ganhou mais sentido, a partir do Encontro de Puebla, em 1979. Está aí a referência clara ao bispo Helder Câmara, que acolhia na casa episcopal, uma sacristia transformada em residência, os mais pobres do Recife. Igreja pobre foi expressão de João XXIII no rumo que procurou para a Igreja conciliar. Veio para o presente o testemunho de Francisco de Assis, João de Deus, Vicente de Paulo, o Cotolengo de Turim, Frederico Ozanam, Padre Américo… Foi palavra feita vida por Charles de Foucauld, Teresa de Calcutá, Criaditas dos Pobres, Irmãzinhas de Jesus, e por milhares de homens e mulheres, de ontem e de hoje, para quem a pobreza é serviço e comunhão viva com os mais pobres da sociedade.
O Papa lançou um desafio à Igreja de Roma e à dos países mais ricos, a que não deve ser difícil responder. A ostentação é provocação, bem como o gastar, sem outros horizontes que os pessoais ou locais, e o esbanjar o supérfluo. Tudo isto é hoje e mais ainda entre cristãos, sinal insensibilidade ao Evangelho. A Igreja pobre e dos pobres sente-se obrigada a ponderar os seus gastos e a sentir-se incomodada pelo clamor dos pobres. O exemplo tem de vir de cima. De cardeais, bispos e padres. Há muitas coisas a alijar, dispensáveis e provocantes, a começar pelas vestes e os adereços de luxo, as casas e os automóveis, e a continuar com as despesas, não urgentes, nem prioritárias. Ao Papa Francisco não interessa deslumbrar com os seus gestos. A sua missão a favor dos pobres apenas mostra caminhos que ele anda, com alegria e de maneira discreta.