António Marcelino
Muita gente que governa, legisla, promove manifestações e grita slogans até à rouquidão desconhece o povo português ou conhece apenas uma parte dele. Esse povo que segue a sua vida e luta por ela com realismo e sabedoria, rindo-se dos que falam dele e dizem que em seu nome, sem o ouvirem e o conhecerem. Quando Sá Carneiro falou do “povo real” muitos gostaram da expressão e abusaram dela. Soava-lhes bem, mas nunca lhe captaram o verdadeiro sentido. Gritava-se, a torto e a direito, que “o povo é quem mais ordena”. E ordenou mesmo. Calou os jovens milicianos da quinta divisão que andaram, após a revolução, a percorrer as aldeias do interior para instruir o povo inculto. Fui testemunha da sua ignorância e disparates.
A reserva moral e a força de um país estão no povo que o constitui. Há tempos, na TV, perguntaram ao arcebispo de Braga como é que o povo do norte sentia e vivia a crise. O povo, disse ele, mais ou menos por estas palavras, sente a crise, mas não deixa de fazer o que está ao seu alcance para continuar o seu caminho. Não deixou as suas romarias e a sua alegria natural, trabalha e pensa que nem tudo está perdido.
O nosso povo luta sempre, olhando para a frente com renovada esperança. Os seus desânimos não duram muito. Sabe lutar e caminhar, mesmo com ventos contrários.
Mas a gente que manda e grita em Lisboa não é também povo? Alguns não gostam de o ser. Julgam-se líderes intocáveis, gente que sabe tudo e não perde tempo, nem a ouvir, nem a pensar. Outros são filhos do povo humilde, laborioso e simples, mas pensam que podiam, no barulho da capital, conquistar fortuna a qualquer preço, depressa e com pouco trabalho. Quando começam a ter o nome nos jornais esquecem a terra e família. Por vezes conseguiram o que almejaram. Alguns deles estão agora no atoleiro. Do povo tem vindo, também, ao longo dos anos, gente grande que não se inebriou e junta, justificadamente, o seu nome aos poucos sábios deste país.
A sabedoria do povo não é a dos livros. É a da vida. Muito mais consistente, porque nascida de uma experiência vivida e sofrida. A força do povo português vem da sua secular educação moral e cristã, está-lhe colada ao coração, sempre foi determinante nos momentos, quer de facilidades, quer de dificuldades. A sementeira pode num ano não ter dado fruto, mas, no momento próprio, volta-se a semear. A esperança comanda a vida e dissipa as desilusões. Quando tem de mudar, muda. E até parte, com igual determinação, mundo fora, sem cortar a ligação às raízes, a que sempre volta a procurar a força e a renovar o sentido que o norteia na vida. O povo tem história que sempre se pode ler. Não nos livros. Na escola da vida aprende e ensina.
É preciso voltar ao povo. Não para o explorar, nem o alienar. Ninguém é seu dono. Voltar ao povo para aprender com ele a descobrir os caminhos do presente e do futuro. Uma aprendizagem que falta a políticos profissionais, a gente da comunicação social, a quantos pensam que o mundo começou agora e que, para trás, é tudo para esquecer. Uma aprendizagem que falta também a gente da Igreja. Pensa que sabe e ensina, mas acaba por tresler. Sem saber ler a vida, de pouco vale o saber.
A nossa história diz que muito do que o povo é o deve à formação cristã e à apreensão vivencial dos valores humanos e cristãos, que colheu no seio da família, na catequese e na comunidade onde todos se conhecem e partilham. Mas será que este povo ainda existe? Ouçam-no e verão que sim. Dizia-me um rural a quem dei boleia numa estrada íngreme da serra e deixei falar num momento difícil e penoso: “Sabe, senhor, o que vai cá dentro da gente, e que Deus nos deu, ninguém o tira se a gente não quiser”. É isto que faz a força do povo. Uma luz que vai cá dentro e que nunca morre na sua determinação.
As crises económicas um dia passam, porque há gente que não se deixa esmagar. Deixam marcas, provocam lágrimas, geram dores, espezinham direitos, acordam para realidades esquecidas, mas não têm raízes que as tornem eternas. Delas também se aprende. Quem tem horizontes curtos fica aí parado, somando amarguras e críticas. Quem, como o povo são e sábio, nunca deixou de olhar para o alto e para a frente, aprendeu o que significa ter esperança e sabe que nenhum esforço se perde, quando se decide pela vida. Não gasta o que não tem, sabe poupar, guardar e partilhar, gera amigos, aconselha-se nas horas más, confia na Providência, faz por viver de pé na abundância e nas privações. É assim a força do povo. Uma força capaz de ser luz, uma sabedoria caseira para vencer todas as crises.
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