Quando o Zé viu a Maria
Seu rosto se iluminou
E num golpe de magia
A Luz se incendiou!
Sentou-se à beira do ancião, com o bloco de notas na mão. Ia fazer-lhe uma entrevista.
A conversa fluía...numa moldura de afetividade. Falou dos seus tempos de juventude, da sua ida para a tropa, em 1940, com 20 anos, do seu regresso, no dia em que completava 22 anos. Foi aí, a sua primeira grande aprendizagem da vida. O tempo de recruta foi passado em Tancos, na arma de engenharia, segundo explicou. Havia várias especialidades, dentro daquela: os mineiros, os sapadores mineiros, os automobilistas e os sapadores caminhos-de-ferro.
À memória vinham as cenas dos bons velhos tempos, em que havia energia em superavit. A interlocutora ouvia, extasiada, a imaginar aquele belo mancebo, esbelto de 1,70m, e observava o brilho que assomara aos olhos do seu progenitor. No ano de 1940, houve um verão muito quente, pelo que. o Ministério da Guerra, que em 1950 passou a designar-se Ministério do Exército, tomou uma medida muito popular: os recrutas eram poupados aos rigores da canícula, na instrução militar, logo após o almoço. Assim, foi instituída “la siesta”, como dizem os nuestros hermanos! Numa época em que estavam, no poder, homens inteligentes, havia políticas que defendiam os interesses e a integridade física dos mancebos. É assim que se tem o povo nas mãos, indo ao encontro das suas necessidades!
Era a seguir à sesta, que se procedia à alfabetização dos soldados, já que muitos ingressavam na tropa sem terem passado pela escola primária. Estávamos numa altura em que a instrução primária não era obrigatória. O Zé, com exame da 4ª classe, feito com distinção, não integrava o número de alunos que tinha aula, a seguir à sesta! —Ficava mais uma hora na tarimba! Retorquiu com regozijo.
Referiu também o soldo pago aos soldados e que consistia em 5 tostões por dia, 10 tostões ao 2º cabo 15 tostões ao 1º cabo. Era esta a remuneração que o Zé auferia, pelo posto que ocupava de 2º cabo. Aí, o graduado sentiu o apelo do conhecimento, pois chefiar homens é uma tarefa ingente! Pensarão assim, os políticos? Para o consumar, tomou uma decisão, quando regressou da tropa: inscrever-se na Escola Comercial e Industrial de Aveiro. Os encargos da família que constituíra, mais a filiação nas forças da PSP, depressa lhe absorveram a disponibilidade. Ainda hoje, passado tanto tempo, recorda com nostalgia e guarda o cartão de matrícula.
Inquirido sobre a sua escolaridade, que fez, juntamente com a sua futura companheira de jornada, evoca os tempos do casal de professores que abarcava toda a população escolar da Gafanha da Encarnação: Professor Cesário da Cruz que ensinava os rapazes e Professora Mª Augusta Cruz, que lecionava as meninas.
Havia algum despique entre os bons alunos, e foi narrada a cena em que a Luz ia à sala dos rapazes, solicitada pelo professor, para fazer algum esclarecimento ou resolver algum problema. O Zé começou ali, a delinear as estratégias da sua escolha sentimental. Afinal, aprendiam na mesma escola, apenas separados por uma parede. Desde muito cedo, se conheceram e sentiram o apelo da intelectualidade!
O Zé tinha ambições, no campo académico e muito gostaria de ter estudado e alargado os seus horizontes.
Um dia, no quartel, apareceu um alfarrabista a vender livros usados. O que haveria de atrair a atenção do Zé? Nem mais nem menos, “Os Lusíadas” de Luís de Camões! É uma edição de bolso de 1876, que lhe custou a módica quantia de 3$00! Uma verdadeira relíquia de que sou depositária e que guardo como um verdadeiro tesouro...por motivos óbvios! A confissão mais bombástica feita nesta entrevista........foi a que se segue: aos 20 anos de idade, sem qualquer formação académica clássica.........o Zé leu Os Lusíadas, na íntegra! Quem de entre os nossos ilustres se poderá gabar do mesmo? O livro é de leitura difícil, e nem os estudantes do ensino regular, lêem com agrado! O que, normalmente, acontece é fazer-se a leitura dos cantos e das partes assinaladas como obrigatórias. O interesse, a dedicação, direi até, o fervor à sua língua materna, na pessoa dum poeta que o Zé ouvira referir como “grande”, deram-lhe o incentivo àquela aquisição e leitura.
Tão bem interiorizou a epopeia, que mais tarde, recitava as décimas da obra, aos serões, à volta da lareira. Os seus rebentos foram, desde tenra idade impregnados desta cultura lusíada.
Com este modelo de integridade humana, de sabedoria e robustez de caráter, a nortear a minha vida, não espanta que tenha revelado alguma dificuldade ao lidar com pessoas de baixa estatura moral .......ou outra!
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