As férias trouxeram-me à serra. É certo que, por razões familiares, por aqui passo com muita frequência; mas as férias permitiram duas semanas de presença, traduzidas em conversas mais longas e observação mais paciente.
Vi o óbvio: uma população envelhecida, passeando achaques e olhares tristes. Muitos, procurando na memória nomes e acontecimentos para alimentar diálogos.
Num passeio a meio da manhã, o cenário é o mesmo todos os dias: do interior das casas escorre o som das rádios ou televisões. O volume demonstra as dificuldades de audição dos moradores. Alguns assomam ao patamar das escadas, para ver se passa vizinho com quem possam trocar frases doridas.
Fui, nestes dias, ouvinte disponível; e confesso que, de tanto ouvir, sinto uma neblina incómoda a perturbar-me o olhar. É que estas pessoas sentem-se afastadas de tudo e esquecidas por quem as devia lembrar...Mas confessam-no com a resignação de quem parece ter abdicado de todos os direitos. “Que é que a gente há de fazer? Eles é que mandam!”
No pronome estão todos os que governam; do mais próximo ao mais distante e decisivo escalão do poder. Mal lhes sabem os nomes e não percebem que mal lhes fizeram para “não ligarem nada à gente”, nem explicarem porque “levam tudo cada vez para mais longe”.
Uma senhora, que quase andou comigo ao colo, faz a declaração mais agressiva: “O diabo carregue essa gente, que só nos deixa o cemitério!...”
Quem me lê pode estar tentado a afirmar que carrego nas tintas. Olhem que não; olhem que não. Pelo contrário, respeito o pudor da maioria que faz do encolher de ombros a forma mais visível de manifestar o que lhe vai na alma.
Estes idosos - mas é de idosos a aldeia - estão sem agenda nem calendário, como se lhe tivessem alterado os dias. “Até o domingo passou para o sábado à tarde”, comenta o ti António, que não vê modo de se habituar ao novo horário das missas que o pároco teve de adotar, para servir diversas paróquias.
Quando converso com ele, a televisão da cozinha mostra o “Verão total” em Lousada e um carpinteiro artesão explica trabalhos expostos sobre uma mesa. “Está a ver aquilo ali? Vai uma aposta em como mais de metade dessa malta que para aí anda a mandar na gente não acertava dois nomes seguidos de uma alfaia agrícola? E nós é que somos os parolos!”
Vou regressar a Lisboa, com a neblina que acima confessei. Com a certeza de que, daqui a uns meses, nada terá mudado para melhor. Mas também com uma outra certeza: a resistência e o orgulho desta gente ofereceu-nos um país que era bom preservar...
Por isso lhes dedico este texto, escrito encostado a um bloco de granito, num pedaço de terra onde o tempo é outro.
Li aqui
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