Chega de Bois
Numas férias de agosto, em Chaves, fomos, com uma família
amiga que nos acolhia com imensa amizade, a família Fernandes, de António
(infelizmente já falecido) e Nazaré, até Montalegre, com o destino assente na
Chega de Bois, tradição daquela zona. Dia quente, com temperatura abafada,
prenunciando trovoada, no dizer dos entendidos. A viagem correu bem, apesar das
curvas e contracurvas desgastantes.
Tinha ouvido falar e lido bastante sobre a etnografia
transmontana, graças aos trabalhos publicados, na altura, por Barroso da Fonte, Lourenço Fontes (o célebre Padre Fontes, de Vilar de
Perdizes), Alberto Machado, Santana Dionísio e outros. A curiosidade era muita,
apesar de não gostar de lutas brutais, quer entre pessoas quer entre animais,
mas conhecer a tradição, ao vivo, aguçou-me o desejo.
Quando chegámos a Montalegre, o céu estava pesado de negro,
fazendo adivinhar chuva forte e trovoada rija. Assim foi. Bem lá no cimo, perto
do Castelo, a chuva, grossa e intensa,
parecia adivinhar um dilúvio. Em simultâneo, cai sobre nós, assustados nos
carros, uma girândola de trovões e relâmpagos como nunca tínhamos visto. Era,
realmente, de meter medo ao mais corajoso. E nunca mais acabava aquela cena
aterradora.
O tempo, de curtos minutos terríveis, parecia sem fim. Mas lá
passou e de imediato depois solta-se um sol radioso. Haverá Chega de Bois? — foi
pergunta que ficou no ar.
Naquelas terras transmontanas havia o Boi do Povo, que
estava encarregado de espalhar descendência, com regra, por aquelas bandas. Era
um boi com ascendência famosa, possante, valente, com garantia de alimento
cuidado durante a vida fértil. Havia pessoas encarregadas de o tratar com
esmero. O Boi do Povo chegava a ser “proprietário” de bens que lhe tinham
sido doados por benfeitores. Era um rei!
Para além de ter responsabilidades na fertilização das vacas,
o Boi do Povo tinha de participar na tal festa da Chega de Bois. Levados para
um descampado, assumido como arena da luta, dois bois, acicatados pelos tratadores
e membros das aldeias que entravam no jogo, olhavam-se e pegavam-se em
desenfreada peleja, medindo forças e atacando, até que um deles, temeroso e assustado, fugisse
derrotado. Era o delírio dos apoiantes do vencedor e o desânimo desesperado dos
que viram o seu boi escapar-se, vencido.
Pois estávamos na dúvida, depois da trovoada, se haveria ou
não Chega de Bois. Nesse ínterim, saí do carro e dirigi-me a um montalegrense,
pondo-lhe a questão. Ele olhou o céu, talvez tenha recordado tardes semelhantes,
e respondeu-me de pronto: «Tou quinda!»
Confesso que fiquei sem perceber. Os meus amigos transmontanos
logo me esclareceram: «Vamos ter Chega, sim senhor.»
— Como assim?
— «Tou quinda»… Estou [convencido] que ainda!
E lá fomos ver que boi tinha mais força, mais gana.
Fernando Martins