sexta-feira, 10 de agosto de 2012

"Tou quinda!"


Chega de Bois

Numas férias de agosto, em Chaves, fomos, com uma família amiga que nos acolhia com imensa amizade, a família Fernandes, de António (infelizmente já falecido) e Nazaré, até Montalegre, com o destino assente na Chega de Bois, tradição daquela zona. Dia quente, com temperatura abafada, prenunciando trovoada, no dizer dos entendidos. A viagem correu bem, apesar das curvas e contracurvas desgastantes.
Tinha ouvido falar e lido bastante sobre a etnografia transmontana, graças aos trabalhos publicados, na altura,  por Barroso da Fonte, Lourenço  Fontes (o célebre Padre Fontes, de Vilar de Perdizes), Alberto Machado, Santana Dionísio e outros. A curiosidade era muita, apesar de não gostar de lutas brutais, quer entre pessoas quer entre animais, mas conhecer a tradição, ao vivo, aguçou-me o desejo.
Quando chegámos a Montalegre, o céu estava pesado de negro, fazendo adivinhar chuva forte e trovoada rija. Assim foi. Bem lá no cimo, perto do Castelo,  a chuva, grossa e intensa, parecia adivinhar um dilúvio. Em simultâneo, cai sobre nós, assustados nos carros, uma girândola de trovões e relâmpagos como nunca tínhamos visto. Era, realmente, de meter medo ao mais corajoso. E nunca mais acabava aquela cena aterradora.
O tempo, de curtos minutos terríveis, parecia sem fim. Mas lá passou e de imediato depois solta-se um sol radioso. Haverá Chega de Bois? — foi pergunta que ficou no ar.

Naquelas terras transmontanas havia o Boi do Povo, que estava encarregado de espalhar descendência, com regra, por aquelas bandas. Era um boi com ascendência famosa, possante, valente, com garantia de alimento cuidado durante a vida fértil. Havia pessoas encarregadas de o tratar com esmero. O Boi do Povo chegava a ser “proprietário” de bens que lhe tinham sido doados por benfeitores. Era um rei!
Para além de ter responsabilidades na fertilização das vacas, o Boi do Povo tinha de participar na tal festa da Chega de Bois. Levados para um descampado, assumido como arena da luta, dois bois, acicatados pelos tratadores e membros das aldeias que entravam no jogo, olhavam-se e pegavam-se em desenfreada peleja, medindo forças e atacando, até  que um deles, temeroso e assustado, fugisse derrotado. Era o delírio dos apoiantes do vencedor e o desânimo desesperado dos que viram o seu boi escapar-se, vencido.
Pois estávamos na dúvida, depois da trovoada, se haveria ou não Chega de Bois. Nesse ínterim, saí do carro e dirigi-me a um montalegrense, pondo-lhe a questão. Ele olhou o céu, talvez tenha recordado tardes semelhantes, e respondeu-me de pronto: «Tou quinda!»
Confesso que fiquei sem perceber. Os meus amigos transmontanos logo me esclareceram: «Vamos ter Chega, sim senhor.»
—  Como assim?
—  «Tou quinda»… Estou [convencido] que ainda!
E lá fomos ver que boi tinha mais força, mais gana.

Fernando Martins

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