A atitude da multidão denota o alcance da acção missionária de Jesus. Vê o que faz aos doentes e sente-se atraída. Deixa o rame-rame da vida e segue-o. Deleita-se com os ensinamentos que ouve e nem sequer se preocupa com a fome que lhe consome as energias. Experimenta o olhar compadecido de Jesus e aguarda paciente a palavra/resposta às necessidades prementes. Obedece à ordem de Jesus dada pelos apóstolos e senta-se na erva dos campos. Agrupa-se, recebe o pão que lhe é entregue e come até ficar saciada. Conserva o que sobra e deposita-o nas mãos dos encarregados da recolha. Admira a acção extraordinária de Jesus – sinal de uma outra realidade ainda mais sublime - e entusiasma-se tanto que o identifica com o profeta prometido e se propõe aclamá-lo rei. Desolada, vê-o partir sozinho para o monte, como fazia de vez em quando, e fica na expectativa.
A desolação da multidão é compreensível. Tudo apontava para Jesus ser o profeta esperado, o rei anunciado, o messias desejado. A beleza e o encanto dos ensinamentos, a irradiação e a proximidade do agir, a autoridade e eficácia da palavra, e tantos outros sinais indiciavam essa possibilidade. E não era engano!Mas Jesus quer positivamente mostrar que o caminho do Messias prometido era outro: o do serviço humilde e despretensioso, o de valorar as capacidades humanas naturais e adquiridas, o de confiar em Deus e bendizer a preferência pelos mansos e humildes, o de enfrentar e superar as adversidades, ainda que “pagando” dolorosamente o respectivo custo, o de realizar o projecto que Deus lhe confiara, ainda que ficasse só e incompreendido.
O episódio da “multiplicação” dos pães é apresentado pelos evangelistas como um paradigma da realização deste projecto. Ontem como hoje, as multidões têm fome de toda a espécie de pão que corresponde a todas as dimensões do ser integral da pessoa humana. Fome de pão é grito por uma vida digna, por um acesso razoável e equitativo aos bens de todos, por uma liberdade segura, por um amor inquebrantável e solidário, por uma participação responsável na promoção do bem comum, por uma aceitação respeitosa e valorativa da relação com o transcendente, com Deus que historicamente se configura de tantos modos e se humaniza em Jesus Cristo. Fome de pão é grito de denúncia de tudo o que privilegia uns e explora outros, dos mendigos sem nada e dos ricos cheios de si mesmos e dos bens.
Saciar esta fome é direito/dever de todos. O diálogo de Jesus com Filipe e André, embora simbólico, é conclusivo. A multidão vivia do ganho diário. Não havendo trabalho, ficava sem provisões. Nesse tempo, mais de 70% estava sujeita a esta contingência. A contratação era feita na praça pública. A paga da jornada por inteiro equivalia a um denário, importância indispensável para a alimentação do dia. Sem ela, havia fome e mais fome, tantas vezes, acumulada pela falta sucessiva de trabalho, do pagamento do salário, da exploração e da fraude. A esta luz, como podia a multidão ir à cidade para comprar pão, como sugerem os apóstolos? Insensatez ou provocação?
Descartada esta hipótese, Jesus continua preocupado com a fome da multidão. E dá um passo em frente no diálogo: Responsabiliza os apóstolos por arranjarem alimento suficiente e não apenas um bocadinho para cada um. Tarefa árdua e inconcebível. Apesar de tudo, a confiança no Mestre leva-os a procurar. Encontram um rapazinho com farnel de dois peixes e cinco pães. Convidam-no a ceder o que tinha e levam-no a Jesus. (Grande simbolismo está contido neste gesto simples do jovenzinho!).
E a maravilha acontece. A oração de bênção faz do farnel uma “fonte de abastecimento” constante com pão fresco e pronto a ser servido pela comunidade dos crentes. Tal o sentido escondido nos cinco pães e nos dois peixes. A fome no mundo constitui um desafio permanente à consciência da humanidade e da Igreja. Para cooperar com Deus, senhor de todos os bens, e ser agente de intervenção na sociedade de todos, sem excepção.A celebração da eucaristia constitui o memorial sacramental desta responsabilidade histórica. Em cada domingo, o Senhor Jesus nos intima: dai-lhe vós mesmos de comer. E como os apóstolos, somos impelidos a conjugar esforços, a ceder farnéis, a partilhar criteriosamente e a não deixar que nada se perca.