quarta-feira, 2 de maio de 2012

Purificação da Igreja, um exemplo que veio de cima

Texto de António Marcelino 





«A Igreja torna-se insignificante para a sociedade, sempre que a sua coerência não é transparente, olha mais para si própria e se apoia numa história, que não é a da salvação. Com olhos turvados por atavios inúteis, alheios ao exemplo de Cristo e do Evangelho e a uma sociedade mais esclarecida, a Igreja conciliar apaga-se. Os 50 anos do Concílio Vaticano II são um grito de alerta para quem o souber e quiser ouvir.»

A passagem de uma Igreja subordinada à hierarquia a uma Igreja, Povo de Deus, onde a hierarquia é serviço, recebeu, logo no Concílio e a seguir a este, a força do exemplo e do estímulo dos Papas e de muitos bispos conciliares. Uma tarefa que, então, não era fácil, mas era necessária. Ao longo destes 50 anos, os Papas têm sublinhado a importância do Vaticano II e não faltam bispos que lhe querem ser fiéis e norteiam por ele a sua vida e ação pastoral. Não falta, também, gente responsável que parece não ter entendido a urgência da mudança. Esta situação acaba por afetar toda a Igreja. 
A Igreja de Cristo, serva e pobre, e ansiosa por ser mãe e mestra, não era compatível com sinais exteriores que levassem a endeusar a autoridade, mesmo a do Papa e a dos bispos, numa linha de aderências históricas, alheias ao exemplo do seu Fundador e aos critérios evangélicos. 
João XXIII aboliu a cadeira gestatória, esse andor esplendoroso, onde o Papa era conduzido aos ombros; as vestes papais e episcopais simplificaram-se de imediato; a linguagem tornou-se inteligível e próxima. O Papa recusou o lugar de grande senhor, pois queria centrar tudo em Cristo, Chefe e Pastor da Igreja. 
Paulo VI ensinou a Igreja a estar no mundo sem privilégios, nem imposições religiosas. Foi à ONU, apresentou-se sem vestes papais, envergou um fato normal e digno; aproveitou todas as ocasiões para realçar o valor do colégio episcopal a que presidia e de que não queria estar separado; deu, de imediato, relevo às novas estruturas conciliares, o sínodo dos bispos e as conferências episcopais; saiu do Vaticano, assumindo a dimensão missionária, que até ali quase se reduzia a documentos e discursos; universalizou o colégio dos cardeais; escolheu e assumiu, corajosamente, os sinais que dariam sentido eclesial às suas viagens à Terra Santa, à India, à ONU; foi ao encontro de Atenágoras e, para redimir prepotências de Roma, quis fechar um ciclo triste da história, beijando os pés ao Patriarca ortodoxo; devolveu à Igreja Oriental relíquias e ícones que eram seus. 
Foram caindo sinais que, até ali, se fomentavam a reverência religiosa em relação ao Papa e aos bispos, não favoreciam, porém, o esclarecimento da fé, nem o sentido da fraternidade. Foi assim, por exemplo, com a genuflexão despropositada às suas pessoas, o beijo no anel, sempre e até no momento da comunhão eucarística… 
Bispos, como o cardeal de Paris, François Marti, quiseram, a partir do Concílio, ser tratados simplesmente por padres, guiar os próprios carros, acabar com o adorno tolo dos superlativos a preceder os seus nomes… E não faltaram outros, que, logo desde o início, abolindo o estendal do ouro dos anéis e das cruzes peitorais, puseram de parte as armas episcopais e os títulos medievais, próprios de uma fidalguia ultrapassada; as vestes e os sinais episcopais, passaram a ser usados apenas no templo e nos atos de culto. Eliminaram-se das catedrais e dos paços episcopais os tronos com dossel, sinal de que o hierarca devia mover-se no patamar comum a todos. Muitos gestos, lindos e significativos, foram-se multiplicando, sobretudo na América Latina e, também, em alguns países da Europa. 
A preocupação pela simplicidade – quem serve não veste roupas complicadas, nem diz palavras fora do uso corrente – não tem tido sempre seguimento. Custa muito descer do pedestal e eliminar os tronos da mente e do prestígio social. Quando o Papa vai a um país, dizem que vai como chefe de Estado e as pessoas veem-no como o que manda na Igreja; o bispo aproxima-se de todos e o povo, pouco ou mal catequizado, considera-o como o que manda nos padres; é comum falar-se do padre/ pároco como aquele que manda nos leigos e na paróquia… Sempre quem manda! E não falta ainda, com 50 anos de Concílio, quem pense que os padres diocesanos só se podem prestigiar enfeitados com cores romanas. Cores de ilusão, que levam a privilegiar a importância fugaz exterior, porque, parece que ser simplesmente padre, por mais generoso e fiel que ele seja, deixou de ter relevo social. Por estes caminhos, normalmente, os mais dedicados e sacrificados ficam de fora. Ainda bem, porque há distinções que matam. 
Não faltam, ainda hoje, pessoas, estruturas e movimentos que travam a renovação conciliar, aos quais a Igreja, Povo de Deus, com membros iguais em dignidade, custa a aceitar. Como não faltam, por estranho que seja, grupos, presos a tradicionalismos retrógrados, a beneficiar do patrocínio intocável de algum alto clero... 
A Igreja torna-se insignificante para a sociedade, sempre que a sua coerência não é transparente, olha mais para si própria e se apoia numa história, que não é a da salvação. Com olhos turvados por atavios inúteis, alheios ao exemplo de Cristo e do Evangelho e a uma sociedade mais esclarecida, a Igreja conciliar apaga-se. Os 50 anos do Concílio Vaticano II são um grito de alerta para quem o souber e quiser ouvir.


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