Texto de Maria Donzília Almeida
Há uns dias atrás, quando me encontrava, no jardim, num hobby que me preenche algum tempo livre, ouvi chamar:_Professora! Não se lembra de mim? Fiquei surpreendida, pela figura inesperada duma ciganita, que me interpelava, com uma criança ao colo. - Sou a S...! De imediato, a memória me trouxe, à tona, aquele ano de 2000 e..., em que um casalito de ciganos integrava a turma do Ensino Recorrente de adultos.
Era uma criança com um olhar irrequieto que vinha frequentar o curso, num programa de integração. Ao lado, como companheiro de carteira e de jornada, estava o Ma.... A Sab... tinha catorze anos, o Man... tinha dezoito. Viviam num acampamento, na Gafanha, onde várias gerações coabitavam no mesmo espaço, numa promiscuidade que se adivinha pouco compatível com a privacidade duma vida íntima. Mesmo assim, nestas condições de vida e de habitabilidade, a ciganinha estava grávida! Aos catorze anos! Recordo o desvelo com que a tratávamos, especialmente, o presidente da equipa pedagógica, que mais parecia um médico de família! Era a nossa menina, que andava a aprender... para ser mãe!
Quando me apareceu, no jardim, a pedir para as meninas, não a reconheci, apesar da minha boa memória visual! Aquela carinha laroca, que conhecera, há meia dúzia de anos atrás, tinha-se desvanecido com o tempo e as intempéries da vida. A pele tisnada, pelo sol e pelas agruras da maternidade, tinha-lhe envelhecido o rosto, num corpo deformado por duas gravidezes prematuras. A Sab... tinha apenas 20 anos e já duas filhas, uma de 5, outra menos de um ano! Ao observar-lhe o ventre muito dilatado, perguntei se não estava grávida, outra vez, ao que ela me respondeu, com prontidão:_Não, eu tenho aparelho! Tinha havido a intervenção das autoridades de saúde, a tempo de evitar que mais crianças viessem ao mundo, naquelas condições adversas.
Gypsies, gitanos, zíngaros, ciganas, pessoas Rom, juntamente com os Sintos e os Calon ou Calé são designados, vulgarmente, por "Ciganos". São pessoas, tradicionalmente, nómadas, originárias do norte da Índia e que hoje vivem espalhadas pelo mundo, especialmente na Europa, sendo sempre uma minoria étnica nos países onde vivem.
A maioria dos Roms fala um idioma muito próximo das modernas línguas indo-europeias do norte da Índia e do Paquistão. São, muitas vezes, tidos como possuidores de poderes psíquicos; há mesmo o estereótipo do "cigano que prevê o futuro"; “ler a sina” era uma prática atribuída, às ciganas, que no século passado, nos meus tempos de menina, deambulavam pelas Gafanhas, com cestos de vime enfiados na cabeça, enquanto transportavam os filhos ao colo.
A chegada dos primeiros ciganos a Portugal deu-se na segunda metade do século XV e atingiram, a pouco e pouco, os mais remotos extremos da Europa.
Nómadas e treinados em toda a casta de actividades irregulares ou proibidas (roubo, vigarice, feitiçaria, etc.), suscitaram em 1526 uma proibição oficial ao seu ingresso, que se renovou vezes sem conta, mas jamais conduziu ao resultado desejado. Em finais do século XVII foram mandados muitos ciganos para a colónia de Angola.
Numa tentativa de evitar atitudes xenófobas e racistas, os vários governos têm feito um esforço de integração da etnia cigana, de molde a promover a sua aculturação. Neste âmbito, foram tomadas medidas a nível da alfabetização, pois só com instrução/formação, o indivíduo pode ser cidadão de pleno direito. Tive discussões acaloradas com aqueles que se arvoram em “salvadores da pátria” ou “treinadores de bancada”, que contestam tudo e não têm solução para nada. Defendiam o argumento que o RSI (Rendimento Social de Inserção) era o único motivo que levava os ciganos à escola. A sua miopia não os deixava enxergar que subjacente a essa medida pecuniária, estava a necessidade de educar para integrar. O governo tomou uma boa medida, para atingir a tão almejada integração. Por vezes, a sua aplicação falha, ao nível das políticas locais, quando a imaturidade dos seus representantes, não trata as minorias étnicas, nomeadamente, os ciganos, com dignidade e em pé de igualdade!
Quando os nossos emigrantes foram para outros países, não tiveram também de se imiscuir na cultura e nos valores dos países de acolhimento? É com medidas de proteção e tolerância que se escreve a palavra democracia!
Neste particular, dei também o meu contributo, na formação/lecionação de ciganos adultos. Devo referir que houve, da sua parte, uma perfeita sociabilização, sem nunca haver contestação do status quo. Fomos tomando conhecimento, gradual dos seus valores e tradições e verificámos que eles são muito coesos.
Os grupos de ciganos, formados por diversas famílias, possuem um profundo sentido de união e solidariedade. Escolhem um chefe vitalício que os representa junto a uma espécie de tribunal, o “krisromani”, reunido em ocasiões especiais para, dentro de suas próprias leis de ética e justiça, resolver os problemas e aplicar as punições.
Os ciganos casam-se cedo, sendo as meninas prometidas desde pequenas, entre famílias geralmente do mesmo grupo ou subgrupo. Uma mulher cigana não pode casar-se com um homem não cigano, sob pena de expulsão. É possível, porém, o casamento de um cigano com uma mulher não cigana, desde que ela se submeta às regras e tradições ciganas. Tivemos uma aluna casada com um cigano, a confirmar isso mesmo.
Atualmente, o modo de vida cigano mudou. Muitos moram em casas, frequentam universidades, ocupam importantes cargos, etc. Nem todos viajam em carroças puxadas por cavalos, mas sim em modernos automóveis. Como em todos os povos, alguns são ricos, outros pobres, uns instruídos, outros não, muitos de boa índole, outros nem tanto, porém todos, sem exceção, jamais perderão a sua alma cigana.
08.04.2012