Texto de Maria Donzília Almeida
Após a instauração da democracia, em 1974 e a abolição da censura, que deu origem a uma abordagem mais livre dos problemas em geral, criaram-se outras condições, para que surgissem novos autores de literatura infantil bem como se desenvolvessem esforços, para que houvesse um novo olhar e um novo entendimento sobre as questões da leitura e da literatura infantil.
O PNL (Plano nacional de leitura) criado pelo ministério, para incrementar a leitura nas classes mais jovens, desenvolveu nas escolas portuguesas uma nova dinâmica de leitura e promoveu o interesse e a procura da literatura infanto-juvenil. Acrescido a esse plano está o projeto Ler+ da responsabilidade da CMI, que pretende reforçar o gosto e a demanda pela leitura.
Assim, após 1974, muitos escritores continuaram a publicar a sua obra (citamos, entre outros, Matilde Rosa Araújo, Luísa Dacosta, Luísa Ducla Soares, Maria Alberta Menéres, António Torrado). Todos eles eu tive o grato prazer de conhecer, no Colóquio de Literatura Infanto-Juvenil, anual, que a editora Civilização realizava na Cidade Invicta, com a duração de dois dias. Realizava-se com o advento da primavera e congregava a nata dos escritores mais badalados da literatura juvenil. Era um prazer enorme ouvir discorrer os artistas da palavra e tenho ainda, diante dos olhos, a figura peculiar do António Torrado com o seu humor tão característico! A Sofia de Mello Breyner Andresen não esteve presente, mas deixou um legado literário de valor incalculável: A Menina do Mar, A Floresta, A Fada Oriana, são obras de referência que têm o condão de encantar miúdos e graúdos. Ainda hoje me delicio a reler a Sofia!
Não podemos deixar de salientar que, apesar dos textos de literatura infantil serem portadores de um potencial formativo, eles não podem nem devem ser objecto de uma instrumentalização ou de uma didactização. Os textos de literatura infantil são por si só, capazes de potenciar uma relação de emoção, entre o texto e a criança leitora. Muitas vezes, esta análise e valorização das situações presentes nos textos, elaboradas pela criança leitora, fazem emergir, simultaneamente, os valores sociais e os valores éticos que os textos transportam.
Ainda tenho, bem vívida, na memória, a primeira história, que me foi oferecida pelo meu pai, teria talvez, uns sete ou oito anitos. Para me compensar do desconforto que sofrera pela remoção de um cravinho que me nascera no nariz, (já na altura, tinha preocupações estéticas), comprou-me uma historinha que devorei e guardo, indelevelmente, na memória. Chamava-se “O cão fiel”, era da famosa coleção Majora e fora ilustrado por Laura Costa. Eram uma verdadeira delícia, as ilustrações desta senhora! O seu grafismo era inconfundível!
Laura Costa, nasceu no Porto em 1910e morreu em1992. É considerada uma das mais prolíficas ilustradoras de livros para crianças e de costumes tradicionais portugueses da década de quarenta.
Laura não retrata a fealdade dos vilões das histórias infantis. A mais cruel megera e o mais horrendo gnomo parecem tios feiotes mas simpáticos, criaturas apuradas por um paradoxal arianismo louro e azul que casava bem com o grotesco onirismo das fábulas. Laura evita a representação das odiosas cenas de sangue, fixando geralmente as personagens em trânsito ou em poses narcisistas que dispensam cenário, em trajos sumptuosos que naturalmente beneficiam do seu virtuoso traço. Se a ilustração, em geral, permite maltratar esteticamente a figuração masculina, temos em Laura Costa a excepção. Garbosos príncipes, rudes lenhadores e bondosos reis partilham o mesmo traço adocicado, efeminados até. O pouco que sabemos de Laura está em contradição aparente com a sua delicodoce obra. Senhora de refinada cultura, sem confissão religiosa, foi a primeira aluna das Belas Artes do Porto a participar voluntariamente nas aulas de desenho do nu masculino, quando na altura eram facultativas para o sexo feminino.
Desde cedo, a mulher começou a marcar a sua posição, numa sociedade, maioritariamente, dominada por valores machistas!
02.04.2012