João lança mão de uma pedagogia de sinais, imagens, metáforas, alegorias e de outros recursos típicos da cultura dos destinatários dos seus escritos para apresentar a identidade de Jesus, sem reduções nem exageros. Após a cura do cego de nascença e do diálogo tenso que a envolve, a narrativa faz-nos pressentir a necessidade de uma afirmação clara, de uma definição precisa, de uma interpelação forte dos interlocutores. E recorre à parábola do rebanho que tem pastores mercenários e um outro que o não é.
Deste contraste emerge, dando continuidade à tradição bíblica do pastoreio, a apresentação de Jesus como aquele que oferece a sua vida por toda a humanidade (o rebanho congregado ou disperso, o que ouve a sua palavra ou ainda não, o que tem consciência de beneficiar da sua proximidade ou vive numa insensibilidade de indiferença), aquele que conhece cada um pelo seu nome e lhe presta os melhores cuidados, o que liberta do espaço fechado do redil e de tudo o que dá segurança, mas oprime e reduz horizontes de liberdade, o que vai à frente no longo caminhar da história e mostra haver sempre um futuro a aguardar, o que sabe acompanhar no percurso da vida, nas suas fases de tranquilidade ou de turbulência (caminho lhano, barrancos, solavancos, vertigens). Aquele que tudo faz para que tenhamos vida e vida em abundância. O Bom Pastor dá a vida pelos seus que são todos os seres humanos, toda a humanidade, sem qualquer restrição. Assim o rememora o celebrante na consagração do vinho na eucaristia ao dizer: “Este é o cálice do meu sangue, sangue da nova e eterna aliança, derramado por vós e por todos”.
O espanto dos ouvintes não podia ser maior. Habituados que estavam ao estatuto dos mercenários, que surpresa, que contraste, que provocação! Os assalariados faziam normalmente um contracto de trabalho, com regras definidas, em que se previam situações de perigo iminente. Ocorrendo uma destas situações de risco sério de vida (como seria a incapacidade real de fazer frente ao atacante feroz e possante), o guarda do rebanho não era obrigado e oferecer-lhe resistência até à morte, a ser “comido” antes das ovelhas. Não desertava por cobardia, apenas procurava salvar o possível.
A classificação que Jesus dá a este proceder parece cáustica: desertor perante o mínimo sinal de perigo, guarda sem qualquer preocupação de vigilância, mercenário interessado apenas na paga que lhe é devida por contracto, fugitivo que busca a segurança e aguarda que a tormenta acalme e passe, – não lhe importam os estragos -, e ele possa começar a gerir os destroços até o rebanho se refazer ou o dono intervir para ajuste de contas.
O Bom Pastor identifica-se com a sorte dos que lhe estão confiados. Reconhece-se dom de Deus Pai – o Pastor por excelência – que se faz doação em Jesus Cristo e nas suas atitudes benevolentes. Quebra a lógica do dar para receber, do entregar-se para ser retribuído. Nesta relação não há troca, nem mais-valias e menos ainda malfeitorias. Como acontece frequentemente entre os humanos. O único desejo de Jesus, belo e generoso Pastor, expressa-se na vida e sua qualidade, abundante para todos, digna para cada um.
Este desejo faz-se projecto de vida a crescer que se vai realizando de muitos modos, mas sobretudo por meio das comunidades cristãs, onde a voz é escutada na proclamação da Palavra e a vida é alimentada na celebração da eucaristia. Comunidades que irradiam o rosto do Bom Pastor, solidárias com os que exercem a pastorícia – bispo e padres -, com os que assumem outros serviços e ministérios – diáconos e agentes pastorais – com os que discreta, mas persistentemente~, promovem o apostolado capilar, procurando ir aonde se encontra o necessitado.
As boas comunidades desafiam os seus pastores, ajudam a moldar as formas mais adequadas do seu serviço, apoiam-nos nos momentos de turbulência e desânimo, abrem-lhes horizontes de esperança pelo seu dinamismo e audácia criativa. Todos participam, cada um na sua modalidade, na missão do único e belo Pastor – Jesus Cristo que oferece livremente a sua vida por todos nós.
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