PITADAS DE SAL – 13
A BOTADELA
Caríssima/o:
«Um dia destes, quando o tempo o permitir e a marinha estiver pronta, será destinado o dia da “botadela”. Normalmente será a um domingo. O marnoto dará um almoço, que será feito e servido na própria marinha, para o qual convidará os amigos. Para a comezaina e para ajudar na botadela que é um trabalho muito duro!
O tempo continuou propício, os dias foram de calor desde o nascer ao pôr-do-sol. Aproximava-se o dia da botadela. O anúncio foi feito:
- Será no próximo domingo…
A areia já estava pronta havia uns dias. Tinha sido trazida do Bico do Muranzel, por barco saleiro, e descarregada em três pontos do malhadal, (os areeiros) de modo a ficar o mais próximo dos meios, para onde depois seria transportada.
Era uma areia miudinha e amarelada, muito limpa, como convinha.
No sábado anterior à botadela, na casa do marnoto era uma azáfama com o preparar dos componentes para o almoço da botadela. Eram as panelas, as batatas, as cebolas, e o inevitável bacalhau. O almoço era sempre batatas com bacalhau, por ser o mais fácil de confeccionar, no dizer do marnoto.
Nunca eram convidadas mulheres ou raparigas para a botadela, ainda hoje estou para saber porquê! O serviço era muito pesado, mas, pelo menos, poderiam ser elas a confeccionar a refeição…
- Então amanhã a que horas é?
- Amanhã vamos à missa da manhã, vocês passam pela minha casa para ajudar a levar as panelas. A bateira está ao pé da seca do Egas. É lá que a gente embarca. Quem não estiver a horas, fica em terra… diz o marnoto.
E assim foi. Tudo como o combinado. O sol estava esplendoroso, nem uma nuvem no céu como convinha num dia de botadela. O pessoal embarcou, sentando-se na borda da bateira. Os moços pegaram nos remos preparando-os para remar. Dois dos convidados mais mexidos quiseram ajudar a remar e sentaram-se nos devidos lugares.
Foi retirado o cadeado que prendia a bateira ao moirão, e com um pequeno empurrão esta afastou-se de terra. Saímos do esteiro e entrámos na cale. Era necessário cuidado, pois ao domingo toda a gente ia à missa da manhã (o pessoal trabalha ao domingo) e a saída para as marinhas era à mesma hora para todos. Eram centenas de embarcações que se iam espalhando por aquela ria.
Eh, pá, olha! Diz um dos convidados levantando-se e apontando na direcção norte para onde se dirigia o maior número de embarcações. A bateira abanou violentamente.
Senta-te, gritou o marnoto que ia ao leme. Ainda botas a bateira ao fundo!
O espectáculo era, para quem não o conhecesse, de pasmar. Dezenas e dezenas de bateiras saídas ao mesmo tempo do ancoradouro, tentando adiantar-se umas às outras, em verdadeira competição.
Não admira que na altura o “Clube dos Galitos de Aveiro” fosse durante uma série de anos Campeão Nacional, de remo.(Enquanto houve marnotos para remar).
Com o pessoal todo sentado lá seguimos viagem, até que chegámos à “Ilha do Robocho” (Ilha de Sama”)
Aí as bateiras dividiam-se. Umas iam para a “Cale do Oiro” onde o Ti Zé Rito amanhava uma marinha, outras seguiam em frente para as “Leitoas”, marinha amanhada pelo Ti Manuel da Branca, outras ainda seguiam para o Esteiro de Sama, onde se situava a marinha que íamos “botar a sal”.
Cruzamo-nos neste esteiro com o Firmino Piaca, acompanhado pelos seus dois filhos, - eram cagareus - e eram dos melhores remadores do “Galitos”, que se dirigiam para a marinha que amanhava, mais a Norte.
O sol começava a aquecer. Os remadores já suavam. Chegamos finalmente à Ilha do Robocho, virámos a estibordo, seguimos mais um pouco e chegámos ao nosso destino: -A marinha, conhecida por Novazinha das Canas ou pelo seu nome oficial “Novazinha de Sama”.
Espetámos uma vara, amarrámos a bateira, cada um levou ao ombro a sua carga, e lá fomos pelos machos abaixo, deixando tudo junto ao palheiro.
Agora ia começar a botadela.
Cada um pega na sua canastra, e toca de acarretar a areia dos areeiros para os meios. Os moços mais velhos iam dizendo qual a quantidade necessária para cada meio, ao mesmo tempo que, com uma pá grande, chamada pá de arear, iam espalhando a areia, que tinha de ficar com uma espessura tanto quanto possível igual.
Para que isso acontecesse usavam uma técnica especial. Enchiam a pá de areia, e enquanto a espalhavam, a pá era progressivamente voltada ao contrário, de modo a que, quando acabava a areia a pá estava de pernas para o ar.
Findo este trabalho, o moço mais velho que era habilidoso a cozinhar, foi tratar da bacalhoada, enquanto eram ultimados outros serviços.
Aproximava-se o meio-dia velho, hora de mais calor, altura em que se deveria abrir o tabuleiro do meio, dando passagem à água das partes de cima, para as partes de baixo, onde se iria formar o sal.
Era um trabalho altamente especializado, que ficava a cargo do marnoto. Era executado com a pá de tabuleiro, uma pá em forma de cunha, que abria uma pequena passagem no portal existente no tabuleiro de meio. Dessa passagem dependia que a marinha “pegasse” bem, isto é, começasse a fazer sal logo no dia seguinte, ou não. Era uma greta pequena, que permitia a passagem de uma pequena quantidade de água, que vagarosamente se ia espalhando pela areia do meio.
Este serviço tinha de ser executado em todos os meios, um a um. Era um trabalho moroso, numa marinha que tinha cerca de cento e cinquenta meios.
Quando todas as passagens estivessem abertas, era dada uma volta mais rápida pelos tabuleiros, aqui abre mais um pouco este, que a parte de baixo ainda tinha pouca moira, mais alem aperta um pouco a passagem com a pá, e apertando a lama com o pé, que o meio já quase tinha a moira suficiente…
Quando a água passava das partes de cima para as de baixo (depois da botadela) era-lhe dado o nome de moira.
Agora, enquanto o tabuleiro era amanhado, o pessoal aproveitava para almoçar.
A comida era despejada do panelão, numa travessa grande, e todo o pessoal comia dessa travessa. Cada um pegava no seu garfo, partia um pedaço de boroa e toca a comer, que a manhã tinha sido de muito trabalho e tinha puxado pelo corpo…
No final da refeição, aquele que não estivesse satisfeito, pegava num bocado do miolo da boroa que tivesse sobrado, e fazia migas no resto do caldo da bacalhoada. Era saboroso. Mas, azar! Não tínhamos trazido colheres. Só uma colher grande de pau, que serviu para mexer a comida enquanto era cozinhada, e para prová-la, para saber se estava bem temperada. Não faz mal.
- Come um de cada vez e anda à roda, foi o alvitre!
Assim fizemos, e não constou que alguém tenha adoecido!
Tinha acabado a botadela. Agora havia que amanhar a marinha (meter água nas zonas que haviam ficado em seco), serviço este que passaria a ter de ser feito todos os dias.
Foram fechados todos os portais dos tabuleiros do meio.
Foram abertos os furos com um moiradoiro que permitiam a passagem da água das canejas, para as partes de cima.
A ligeira aragem que se fazia sentir e mexia a água que ia entrando, era a indicação da quantidade de água necessária. Nestes casos a prática é tudo!
Assim, foram "amanhados" (repostos os níveis de água) nas sobrecabeceiras, nos talhos e nos algibeses ficando a marinha amanhada para o dia seguinte.
Nestes não eram abertos furos. Em cada um havia uma pequena bomba, que era aberta para a passagem das águas, levantando-se as palmetas.
E assim se passou o dia da botadela. Eram cinco horas da tarde, de um domingo qualquer, de um mês de Julho de um ano qualquer…
Toca a arrumar as alfaias no palheiro, o moço mais novo com a jarra da água, agora vazia, ao ombro, e bota p´ra bateira, de regresso a casa. Içava-se a vela, que o norte era fresco, e aí vínhamos nós!
Chegados à seca do Egas, amarrava-se a bateira ao moirão com o cadeado. Só agora estava terminado o dia. Salta para terra…
Estava terminado o domingo, dia de trabalho. E porque era domingo, nesse dia não haveria trabalho na terra.»
De “O Sonho”, do Ângelo Ribau
Pela cópia e com um abraço de parabéns ao Ângelo,
Manuel