António Afonso
António Augusto Afonso, 87 anos, viúvo, é um emigrante nos EUA. Alfaiate de profissão, aqui na nossa terra, junto ao estabelecimento comercial conhecido por Zé da Branca, com a sua palmeira, e em terras do Tio Sam, nunca deixa de pensar nos ares, paisagens, pessoas e acontecimentos que lhe povoam a memória.
Paralelamente à arte que o distinguiu, ainda foi exímio barbeiro, mais aos fins de semana. Numa ou noutra carta que nos escreveu e nas conversas durante as férias que passa na sua e nossa terra, António Afonso deixa transparecer, minuto a minuto, o amor que tem ao torrão natal que lhe está na alma.
Durante a recente visita que nos fez, recordou figuras e factos doutros tempos com memória fresca e fiel, mas também das suas vivências na América. Referiu que, para vencer a solidão, nascida com a reforma, se dedica a recordar, construindo miniaturas de madeira e de outros materiais, onde aviva e enriquece a sua existência, reproduzindo, de cor, edifícios e objetos que traz na cabeça. Tornando-os presentes, longe daqui, pode, então, ao apreciá-los, voltar a recuar décadas e sentir-se gafanhão de coração. Mas António Afonso não se fica por aí. Como gosta de escrever, passa ao papel, numa caligrafia personalizada, certinha e bem medida, estórias vividas há muito tempo.
Nessas memórias, que o são de facto, o nosso conterrâneo pede a todos quantos tiverem a paciência de ler a sua «gatafunhada» tolerância pelos seus erros gramaticais, dedicando-a à sua Gafanha da Nazaré, que nem sequer sabe quanto ele a ama.
Da profissão de barbeiro é que não tem muitas saudades. Lembrou que antigamente os homens de trabalho duro só faziam a barba uma vez por semana, normalmente aos sábados, pelo que apareciam em força mais nesse dia. Tinha, portanto, de trabalhar noite dentro, até de madrugada, e ainda aos domingos, quando calhava. Talvez por essa razão, pôs de lado o corte de cabelo e barbas. Nos EUA só foi alfaiate.
Aquando sua visita, frisou que tem pela Gafanha da Nazaré «uma obsessão que nem queira saber; sonho com ela a todo o momento». E é por isso que, para além das miniaturas que constrói, escreve, na certeza que possui de que «recordar é reviver».
António Afonso é cristão, pertencendo à Igreja Evangélica da Gafanha da Nazaré. Trata-se de um homem de convicções fortes, tendo estado na primeira linha dos que introduziram esta corrente do cristianismo na nossa terra.
Lemos alguns dos seus escritos, gentilmente emprestados por sua sobrinha Sara Raquel, docente da Universidade do Minho, que ele carinhosamente trata por neta. E gostámos. Gostámos de saber que há formas muito válidas de ocupar o tempo, fugindo das futilidades quotidianas de muita gente. Gostámos de saber que há emigrantes que conseguem preservar, apesar das distâncias e das marcas da vida, as memórias da terra-berço. E também gostámos de ficar a conhecer vivências de épocas que já lá vão, mas que voltam através de quem as sabe guardar e partilhar. É o caso do António Afonso.
Há meses escrevemos sobre o primeiro óbito ocorrido na jovem freguesia da Gafanha da Nazaré. Disse que em «7 de maio de 1011, às dez horas da noite, faleceu numa casa do Pharol da Barra, Joaquim Francisco Gafanhão, de cinquenta anos, pescador e casado com Maria de Jesus, o qual recebeu os “sacramentos da Santa Madre Igreja”, natural desta freguesia. Era filho legítimo de António Francisco Gafanhão e de Ana de Jesus, jornaleiros, naturais desta freguesia, e não fez testamento. Deixa filhos menores e foi sepultado no cemitério público da vila e freguesia de Ílhavo». Na altura, lançámos uma pergunta, no sentido de alguém nos avançar com os nomes dos descendentes. António Afonso, meses depois, telefona-nos dos EUA para nos dizer que afinal a pessoa citada era o seu avô. E com esta informação vieram outras relacionadas com os apelidos Gafanhão e Pinto Reis e a promessa de que haveríamos de ler os seus manuscritos. O que aconteceu, de facto.
Fernando Martins
Das memórias do nosso conterrâneo
«Neste momento, me veio à mente, que vi uma vez o primo Jorge bem zangado. Foi a única vez que o vi assim. Era seu costume, em certos dias de cada mês, ir à Capitania de Aveiro, receber a sua pensão de reforma. Estando ele à espera do autocarro da A.V. Aveirense para o regresso, eis que aparece o Carlos Branco, que lhe ofereceu uma boleia de mota.
O Carlos Branco era um rapaz da Gafanha do Carmo, bem nosso conhecido, até porque tinha sido meu companheiro da tropa, no Regimento de Infantaria 10, em Aveiro; e que ao tempo era o chefe das oficinas de serralharia da JARBA [Junta Autónoma da Ria e Barra de Aveiro]. Era, o que se pode dizer, e sem favor, uma excelente pessoa. Tinha o seu “fraco” pelas motas e era entusiasta das grandes velocidades.
Então o parente Jorge aceitou a boleia. Escarranchou-se na mota, agarrou-se muito bem à cintura do Carlos, e em escassos minutos estavam de chegada. O pior foi que o parente Jorge não ganhou para o susto, que foi tão grande, que mal se sustinha nas pernas e sem cor nem fôlego.
Logo que se recompôs e pôde falar foi para “soltar o gado” ao Carlos, mas de que maneira… O Carlos ouviu e nem uma nem duas. Então, para terminar lhe diz: — Tu nunca mais tenhas o atrevimento, em qualquer parte em que eu esteja, de me oferecer boleia, e oxalá que algum dia não te aconteça o pior, que é o que tem acontecido a muitos abusadores da velocidade como tu. (Pouco tempo antes tinha morrido o Hilário Vinagre de mota).
O velhote Jorge tinha toda a razão, realmente o Carlos abusava da velocidade. Não passou muito tempo, o infeliz Carlos foi vítima da velocidade. Numa reta, na área de Calvão, chocou com uma árvore lateral da estrada e ali encontrou a morte na flor da vida»
António Augusto Afonso