Uma reflexão de Georgino Rocha
É impressionante o que acontece a Jesus, após o baptismo. Imediatamente, se dirige ao deserto. Sem prestar contas a ninguém. Fá-lo “empurrado” pelo Espírito Santo. Abdica dos laços familiares de sangue. Fica entregue a si mesmo e à novidade que vai surgir.
É esclarecedor e provocante o motivo que o leva ao deserto: ser tentado por Satanás, a figuração por excelência das forças do mal. A tentação assalta-o ao longo de quarentas dias, o tempo da sua estadia entre animais selvagens. Marcos, o autor da narrativa não diz mais. Mas, não é difícil – como aliás fazem Mateus e Lucas – ir mais longe e ser mais pormenorizado.
O deserto e a tentação surgem como metáforas da realidade humana. Hoje, revestem as formas da nossa situação histórica e social, da nossa cultura fragmentada e subjectivista, da nossa economia precária e subjugada, da nossa religião predominantemente pendente do gosto do “cliente” e das tradições.
O deserto instalou-se no coração humano e da sociedade: As relações sociais quase se desvitalizam, o isolamento solitário aumenta, qual sombra negra a coar a luz intermitente que ainda resta, o individualismo egoísta e insolidário cresce como “feras indomadas”, o assédio aos indefesos e humilhados instala-se, e prepara-se o assalto final para a victória do “bezerro de ouro” – o ídolo do tempo de Moisés - sobre a pessoa e a sua dignidade reconfigurada em Jesus Cristo, o vencedor absoluto da dizimadora tentação.
Sinais e exemplos mortificantes desta situação provocadora estão à vista de todos: orçamentos familiares dramáticos, perda de emprego, redução dos serviços essenciais, esmorecimento da esperança, especialmente nos casais jovens, emigração de quadros qualificados, preparados com grandes sacrifícios dos familiares ou do erário público, venda de habitações que com tanto amor foram adquiridas ou entrega de casas endividadas aos bancos.
Situações, de sinal contrário, ostentam-se em anúncios de publicidade sedutora que oferece “produtos inteiramente desnecessários, mas apresentados como se fossem urgentes: luxo, diversão, sexo, abundância de alimentos até o desperdício". O contexto cultural está eivado de grande consumismo que surge como condição indispensável para a felicidade. Esta cultura do consumo tem um preço muito alto que está a ser pago: desastres ecológicos e ambientais, pobreza crescente em países empobrecidos, aumento da fome no mundo, de violência física, de abuso de drogas, de crime organizado e de usura. Outras situações podem facilmente encontrar-se, aumentando o cortejo apresentado.
O deserto é também espaço de vitória. Tantos homens bons e justos fazem da sua travessia um percurso solidário, um tempo de atenção ao outro, de partilha de bens, de alento na esperança de chegar ao oásis desejado, de advertência contra as falsas miragens, de resistência paciente face à pressa ingénua de enveredar por atalhos, de alimentar “o sonho que comanda a vida”.
Jesus vence a tentação e rasga horizontes ao nosso peregrinar. Estamos em trânsito. A meta já se vislumbra. Ele já a viveu na sua Páscoa. Para lá caminhamos seguindo os seus passos. A isto nos convida o tempo quaresmal que a Igreja nos propõe.