Um artigo de Anselmo Borges
no DN
Quando se pergunta: o que é o Homem?, as tentativas de resposta foram múltiplas ao longo dos tempos. Mas lá está, essencial, a de Aristóteles: um animal que fala, que tem logos, um animal político.
O ser humano é constitutivamente um ser social. Fazemo-nos uns aos outros, genética e culturalmente. Procedemos de humanos e tornamo-nos humanos com outros seres humanos. A relação entre humanos não é algo de acrescentado ao ser humano já feito: pelo contrário, constitui-nos. A prova está nos chamados meninos-lobo: tinham a possibilidade de tornar-se humanos, mas, sem o contacto com outros humanos, não acederam à humanidade. É isso: somos humanos entre humanos e com humanos. Apesar da experiência, que também fazemos, da solidão metafísica - cada um é ele, ela, de modo único e intransferível -, não há dúvida de que só na relação nos fazemos. O individualismo atomista contradiz a humanidade que somos.
Sobre este fundo, concretizando, podemos perguntar: como poderíamos realizar a nossa humanidade, em todas as suas possibilidades, sem a cooperação de todos? Este texto, por exemplo, implica a presença de uma língua que eu não criei, um conjunto de referências culturais com que fui dialogando, foi enviado por e-mail, alguém tratou dele e o publicou e depois o distribuiu... Uma rede incalculável de relações, umas conhecidas e outras não. Se pensarmos bem, estamos unidos com todos, nesta pequena aldeia, que é o nosso planeta, incluindo os do passado, que nos permitiram chegar até onde nos encontramos, com telecomunicações, automóveis, electricidade, aviões, televisão, internet e o mundo todo das ideias e os seus debates... Até quando tomo o pequeno-almoço, penso nisso: naqueles que, lá longe, colheram o café e o transportaram e o preparam.
O que somos somo-lo na cooperação de muitos, de todos. Isto é a sociedade, no quadro de divisão de trabalhos, de carismas, de esforços em comum.
Mas, aqui, surge o busílis da questão: quem manda? É o tremendo problema do poder. Porque - não se pode ser ingénuo - onde há muita gente, alguém tem de comandar. Ora, se todos fossem bons, generosos, numa palavra, éticos, esta magna questão não seria questão, pois apenas teríamos necessidade de alguém que coordenasse os esforços, as tarefas, os carismas. Todos obedeceriam às normas, ninguém transgrediria, não haveria clientelismos nem salários escandalosos, todos procurariam o maior bem de todos. Como é sabido, de facto não é assim.
Se todos fossem éticos, não seria necessária a política no sentido estrito da palavra: tomada e organização do poder no quadro do Estado que detém o monopólio da violência. Na realidade, nos seres humanos, há bondade e maldade, alguns ou muitos são preguiçosos e querem viver à custa dos outros, há os ladrões, os corruptos e os corruptores, os violentos, e somos todos interesseiros e egoístas. E lá está a política como arte de congregar esforços para o bem comum, no quadro de leis que devem ser justas e equitativas e no sentido de harmonizar interesses, na paz possível, evitando a violência.
A política não tem por finalidade tornar os homens moralmente bons, muito menos, santos - é necessária, precisamente porque não somos éticos. Aqui, ergue-se o paradoxo: não há política ética, o que há são homens e mulheres éticos ou não na política. Como também os políticos são homens e mulheres, com virtudes e vícios, a política é um exercício complexo e sempre instável, exigindo um aperfeiçoamento constante. De facto, o que se passa, quando a política fica subordinada ao poder económico e financeiro? Ou se se der uma cartelização dos partidos?
Quando se olha para o presente estado de coisas, percebe-se que a própria democracia não é uma aquisição definitiva. Então, o que falta no meio do deserto ético? Precisamente a conversão ética, porque a multiplicação de leis e a sua sanção acabam por levar a um labirinto sem saída. Mas, desgraçadamente, as instituições mais responsáveis pela transmissão dos valores éticos estão a abrir falência: a família, a escola, a Igreja. A situação pode tornar-se explosiva.