Entrevista conduzida por Fernando Martins
Carlos Anastácio
O trabalho faz parte da luta contra a solidão
Carlos Ramos Anastácio, 76 anos, casado, dois filhos e dois netos, serralheiro civil em situação de reformado, ocupa os seus dias a trabalhar, por gosto, para se entreter e por necessidade de se sentir útil. Não trabalha para ganhar dinheiro, pois oferece muito do que faz, na sua pequena oficina, sem grandes recursos técnicos, aos familiares e amigos que o procuram ou que o visitam, na esperança de uma ajuda. No caso, por exemplo, de um utensílio que está meio gasto ou a precisar de reparação. Há dias, um amigo pediu-lhe que desse um jeito a uma tenaz, gasta nas pontas pelo uso. O Carlos consertou a tenaz, reconstituindo as pontas e, ao entregá-la, ofereceu ao amigo uma nova em aço inoxidável. O Carlos é assim.
Na visita que lhe fizemos há dias apreciámos algumas peças perfeitas e luzidias. Uma enxada ainda sem cabo, uma tenaz, um pequeno ancinho para o jardim, uma pá para o lixo, grelhas para assar sardinhas, fogareiros e até um barquinho com caldeirinha para se deslocar pela força do vapor. Tem, contudo, uma alteração a fazer, para o barquinho não navegar somente para o lado em que está virado.
Tudo feito em aço inoxidável, que o Carlos é, como sempre gostou de ser, um «serralheiro limpo», pois não gosta de mexer em ferrugens. Tem iniciado um carrinho de mão para o jardim, entre outras objetos que o levam a manter-se ativo, numa luta tenaz contra uma certa solidão provocada pelo seu estado de saúde, que o obriga a usar cadeira de rodas. Porém, mostrou, durante a conversa que manteve connosco, uma grande vontade de receber amigos com quem possa conversar, desabafar e passar algum tempo.
O Carlos Anastácio iniciou a sua vida profissional na famosa, para a época, oficina de Manuel da Silva, onde mais tarde se instalou o Stand Dias. Por ali foi aprendendo e trabalhando até cumprir o serviço militar. E lembra que «na oficina do senhor Manuel da Silva se aprendia a fazer as coisas muito bem feitas». Depois foi para a Empresa de Pesca de Aveiro, mais conhecida por empresa do Egas, que trabalhava, como o Carlos nos frisou, apenas para os navios da casa. Daí, mudou-se para a Miradouro, do empresário França Morte.
Em jovem, a partir dos 12 anos, aprendeu música e tocava clarinete na Filarmónica Ilhavense. Chegou a tocar na festa dos reis da Gafanha da Nazaré, sempre com a preocupação de apresentar o seu instrumento preferido bem afinado. Depois deixou a filarmónica, mas nunca mais deixou de apreciar uma boa banda de música.
Carlos Anastácio
Há anos começou a sentir os pés muito frios e em determinada altura manifestou-se uma certa insensibilidade nos membros inferiores. Não sabia se era diabético ou não. De médico para médico, de tratamento para tratamento, as melhoras não surgiram e em 2001 foi-lhe amputada uma perna. Em 2010 foi a segunda e a cadeira de rodas tornou-se inevitável. Estuda-se, entretanto, a possível aplicação de próteses, mas o Carlos não manifesta grandes esperanças na sua utilização. Sabe, como todos nós sabemos, que há atletas e outras pessoas que as usam, podendo com elas assegurar uma mobilidade mais autónoma. Ele vê casos desses na televisão, mas admite «que aqui [Portugal] não fazem próteses dessas».
Avançámos com a necessidade de se apostar nessa ideia, respondendo o Carlos que até «tem próteses em casa», inacabadas. Acrescenta que é muito complicado «calçá-las», o que exige pôr-se de pé e fazer muita força. Todavia, não deixa de reconhecer que o seu uso «exige muito treino».
Nesta fase da sua vida, para além da fisioterapia, fundamental para ativar a circulação sanguínea no que resta das pernas amputadas, o Carlos está dependente da mulher, que nem pode sair de casa como desejaria, não vá ele precisar da sua ajuda.
Durante a entrevista, sentimos que o Carlos Anastácio gosta de receber a visita dos amigos para com eles conversar e passar algum tempo. Por sinal, durante a conversa apareceu um antigo colega da oficina onde se reformou. Outros amigos, no entanto, primam pela ausência, o que ele lamenta. E desabafa que não compreende a desculpa em que alguns se apoiam, quando dizem que «não têm coragem para o visitar». «Tantos amigos que eu tinha, mas a grande maioria esqueceu-se de mim» — lamenta-se, com natural mágoa, o Carlos Anastácio.
Melros brancos
A comunicação social tem-se feito eco de muitos dramas vividos por idosos e doentes, entregues à sua sorte. Por força dela, sabemos de pessoas que foram marginalizadas pelas famílias ou pela sociedade, enquanto outras, por razões várias, se automarginalizaram. Esquecidas ou ignoradas, acabaram por morrer sem ninguém notar a sua falta.
Hoje, já se sabe que muitos milhares de idosos continuam a viver sós, sem esperança em dias diferentes. As autarquias e outras instituições, em resposta às denúncias dos órgãos da comunicação social, iniciaram, com garantias de urgência, contactos com as populações, numa tentativa de se conhecer a situação real dos nossos velhos, doentes, marginalizados ou ignorados, porventura carentes de apoios e de quem olhe por eles.
A tarefa não vai ser fácil, tanto no registo como nos apoios a implementar.
Penso que se torna imperioso acicatar o espírito de vizinhança, tão em evidência há décadas, mas perdido desde há muito com a correria que se instalou nesta sociedade sem alma. O corre-corre de quem trabalha, o comodismo de quem apenas olha friamente para o seu umbigo, o urbanismo dos grandes centros que engaiolam pessoas e famílias, entre outras razões, que só os sociólogos saberão explicar, estarão na base desta realidade nua e crua, em que ninguém conhece ninguém.
Importa, portanto, avançar, na nossa comunidade e em todas as outras, com a descoberta de casos que precisem de projetos sociais que respondam eficazmente a dramas sociais de quem vive só e esquecido.
Na entrevista que fizemos ao Carlos Anastácio (ver texto nesta página), confirmámos o drama de quem se sente ignorado pelos amigos. Em jeito de desabafo, ouvimos dele uma comparação que nos deve levar a pensar na nossa atitude em relação aos doentes: «há amigos que são como os melros brancos», melros esses que não existem na natureza, porque são todos negros e de bico amarelo.