sábado, 18 de fevereiro de 2012

Carlos Anastácio em entrevista ao Timoneiro


Entrevista conduzida por Fernando Martins


Carlos Anastácio


O trabalho faz parte da luta contra a solidão 


Carlos Ramos Anastácio, 76 anos, casado, dois filhos e dois netos, serralheiro civil em situação de reformado, ocupa os seus dias a trabalhar, por gosto, para se entreter e por necessidade de se sentir útil. Não trabalha para ganhar dinheiro, pois oferece muito do que faz, na sua pequena oficina, sem grandes recursos técnicos, aos familiares e amigos que o procuram ou que o visitam, na esperança de uma ajuda. No caso, por exemplo, de um utensílio que está meio gasto ou a precisar de reparação. Há dias, um amigo pediu-lhe que desse um jeito a uma tenaz, gasta nas pontas pelo uso. O Carlos consertou a tenaz, reconstituindo as pontas e, ao entregá-la, ofereceu ao amigo uma nova em aço inoxidável. O Carlos é assim. 
Na visita que lhe fizemos há dias apreciámos algumas peças perfeitas e luzidias. Uma enxada ainda sem cabo, uma tenaz, um pequeno ancinho para o jardim, uma pá para o lixo, grelhas para assar sardinhas, fogareiros e até um barquinho com caldeirinha para se deslocar pela força do vapor. Tem, contudo, uma alteração a fazer, para o barquinho não navegar somente para o lado em que está virado. 
Tudo feito em aço inoxidável, que o Carlos é, como sempre gostou de ser, um «serralheiro limpo», pois não gosta de mexer em ferrugens. Tem iniciado um carrinho de mão para o jardim, entre outras objetos que o levam a manter-se ativo, numa luta tenaz contra uma certa solidão provocada pelo seu estado de saúde, que o obriga a usar cadeira de rodas. Porém, mostrou, durante a conversa que manteve connosco, uma grande vontade de receber amigos com quem possa conversar, desabafar e passar algum tempo. 
O Carlos Anastácio iniciou a sua vida profissional na famosa, para a época, oficina de Manuel da Silva, onde mais tarde se instalou o Stand Dias. Por ali foi aprendendo e trabalhando até cumprir o serviço militar. E lembra que «na oficina do senhor Manuel da Silva se aprendia a fazer as coisas muito bem feitas». Depois foi para a Empresa de Pesca de Aveiro, mais conhecida por empresa do Egas, que trabalhava, como o Carlos nos frisou, apenas para os navios da casa. Daí, mudou-se para a Miradouro, do empresário França Morte.
Em jovem, a partir dos 12 anos, aprendeu música e tocava clarinete na Filarmónica Ilhavense. Chegou a tocar na festa dos reis da Gafanha da Nazaré, sempre com a preocupação de apresentar o seu instrumento preferido bem afinado. Depois deixou a filarmónica, mas nunca mais deixou de apreciar uma boa banda de música. 

Carlos Anastácio

Há anos começou a sentir os pés muito frios e em determinada altura manifestou-se uma certa insensibilidade nos membros inferiores. Não sabia se era diabético ou não. De médico para médico, de tratamento para tratamento, as melhoras não surgiram e em 2001 foi-lhe amputada uma perna. Em 2010 foi a segunda e a cadeira de rodas tornou-se inevitável. Estuda-se, entretanto, a possível aplicação de próteses, mas o Carlos não manifesta grandes esperanças na sua utilização. Sabe, como todos nós sabemos, que há atletas e outras pessoas que as usam, podendo com elas assegurar uma mobilidade mais autónoma. Ele vê casos desses na televisão, mas admite «que aqui [Portugal] não fazem próteses dessas». 
Avançámos com a necessidade de se apostar nessa ideia, respondendo o Carlos que até «tem próteses em casa», inacabadas. Acrescenta que é muito complicado «calçá-las», o que exige pôr-se de pé e fazer muita força. Todavia, não deixa de reconhecer que o seu uso «exige muito treino». 
Nesta fase da sua vida, para além da fisioterapia, fundamental para ativar a circulação sanguínea no que resta das pernas amputadas, o Carlos está dependente da mulher, que nem pode sair de casa como desejaria, não vá ele precisar da sua ajuda. 
Durante a entrevista, sentimos que o Carlos Anastácio gosta de receber a visita dos amigos para com eles conversar e passar algum tempo. Por sinal, durante a conversa apareceu um antigo colega da oficina onde se reformou. Outros amigos, no entanto, primam pela ausência, o que ele lamenta. E desabafa que não compreende a desculpa em que alguns se apoiam, quando dizem que «não têm coragem para o visitar». «Tantos amigos que eu tinha, mas a grande maioria esqueceu-se de mim» — lamenta-se, com natural mágoa, o Carlos Anastácio. 


Melros brancos 

A comunicação social tem-se feito eco de muitos dramas vividos por idosos e doentes, entregues à sua sorte. Por força dela, sabemos de pessoas que foram marginalizadas pelas famílias ou pela sociedade, enquanto outras, por razões várias, se automarginalizaram. Esquecidas ou ignoradas, acabaram por morrer sem ninguém notar a sua falta. 
Hoje, já se sabe que muitos milhares de idosos continuam a viver sós, sem esperança em dias diferentes. As autarquias e outras instituições, em resposta às denúncias dos órgãos da comunicação social, iniciaram, com garantias de urgência, contactos com as populações, numa tentativa de se conhecer a situação real dos nossos velhos, doentes, marginalizados ou ignorados, porventura carentes de apoios e de quem olhe por eles. 
A tarefa não vai ser fácil, tanto no registo como nos apoios a implementar. 
Penso que se torna imperioso acicatar o espírito de vizinhança, tão em evidência há décadas, mas perdido desde há muito com a correria que se instalou nesta sociedade sem alma. O corre-corre de quem trabalha, o comodismo de quem apenas olha friamente para o seu umbigo, o urbanismo dos grandes centros que engaiolam pessoas e famílias, entre outras razões, que só os sociólogos saberão explicar, estarão na base desta realidade nua e crua, em que ninguém conhece ninguém. 
Importa, portanto, avançar, na nossa comunidade e em todas as outras, com a descoberta de casos que precisem de projetos sociais que respondam eficazmente a dramas sociais de quem vive só e esquecido. 
Na entrevista que fizemos ao Carlos Anastácio (ver texto nesta página), confirmámos o drama de quem se sente ignorado pelos amigos. Em jeito de desabafo, ouvimos dele uma comparação que nos deve levar a pensar na nossa atitude em relação aos doentes: «há amigos que são como os melros brancos», melros esses que não existem na natureza, porque são todos negros e de bico amarelo. 



Etiquetas

A Alegria do Amor A. M. Pires Cabral Abbé Pierre Abel Resende Abraham Lincoln Abu Dhabi Acácio Catarino Adelino Aires Adérito Tomé Adília Lopes Adolfo Roque Adolfo Suárez Adriano Miranda Adriano Moreira Afonso Henrique Afonso Lopes Vieira Afonso Reis Cabral Afonso Rocha Agostinho da Silva Agustina Bessa-Luís Aida Martins Aida Viegas Aires do Nascimento Alan McFadyen Albert Camus Albert Einstein Albert Schweitzer Alberto Caeiro Alberto Martins Alberto Souto Albufeira Alçada Baptista Alcobaça Alda Casqueira Aldeia da Luz Aldeia Global Alentejo Alexander Bell Alexander Von Humboldt Alexandra Lucas Coelho Alexandre Cruz Alexandre Dumas Alexandre Herculano Alexandre Mello Alexandre Nascimento Alexandre O'Neill Alexandre O’Neill Alexandrina Cordeiro Alfred de Vigny Alfredo Ferreira da Silva Algarve Almada Negreiros Almeida Garrett Álvaro de Campos Álvaro Garrido Álvaro Guimarães Álvaro Teixeira Lopes Alves Barbosa Alves Redol Amadeu de Sousa Amadeu Souza Cardoso Amália Rodrigues Amarante Amaro Neves Amazónia Amélia Fernandes América Latina Amorosa Oliveira Ana Arneira Ana Dulce Ana Luísa Amaral Ana Maria Lopes Ana Paula Vitorino Ana Rita Ribau Ana Sullivan Ana Vicente Ana Vidovic Anabela Capucho André Vieira Andrea Riccardi Andrea Wulf Andreia Hall Andrés Torres Queiruga Ângelo Ribau Ângelo Valente Angola Angra de Heroísmo Angra do Heroísmo Aníbal Sarabando Bola Anselmo Borges Antero de Quental Anthony Bourdin Antoni Gaudí Antónia Rodrigues António Francisco António Marcelino António Moiteiro António Alçada Baptista António Aleixo António Amador António Araújo António Arnaut António Arroio António Augusto Afonso António Barreto António Campos Graça António Capão António Carneiro António Christo António Cirino António Colaço António Conceição António Correia d’Oliveira António Correia de Oliveira António Costa António Couto António Damásio António Feijó António Feio António Fernandes António Ferreira Gomes António Francisco António Francisco dos Santos António Franco Alexandre António Gandarinho António Gedeão António Guerreiro António Guterres António José Seguro António Lau António Lobo Antunes António Manuel Couto Viana António Marcelino António Marques da Silva António Marto António Marujo António Mega Ferreira António Moiteiro António Morais António Neves António Nobre António Pascoal António Pinho António Ramos Rosa António Rego António Rodrigues António Santos Antonio Tabucchi António Vieira António Vítor Carvalho António Vitorino Aquilino Ribeiro Arada Ares da Gafanha Ares da Primavera Ares de Festa Ares de Inverno Ares de Moçambique Ares de Outono Ares de Primavera Ares de verão ARES DO INVERNO ARES DO OUTONO Ares do Verão Arestal Arganil Argentina Argus Ariel Álvarez Aristides Sousa Mendes Aristóteles Armando Cravo Armando Ferraz Armando França Armando Grilo Armando Lourenço Martins Armando Regala Armando Tavares da Silva Arménio Pires Dias Arminda Ribau Arrais Ançã Artur Agostinho Artur Ferreira Sardo Artur Portela Ary dos Santos Ascêncio de Freitas Augusto Gil Augusto Lopes Augusto Santos Silva Augusto Semedo Austen Ivereigh Av. José Estêvão Avanca Aveiro B.B. King Babe Babel Baltasar Casqueira Bárbara Cartagena Bárbara Reis Barra Barra de Aveiro Barra de Mira Bartolomeu dos Mártires Basílio de Oliveira Beatriz Martins Beatriz R. Antunes Beijamim Mónica Beira-Mar Belinha Belmiro de Azevedo Belmiro Fernandes Pereira Belmonte Benjamin Franklin Bento Domingues Bento XVI Bernardo Domingues Bernardo Santareno Bertrand Bertrand Russell Bestida Betânia Betty Friedan Bin Laden Bismarck Boassas Boavista Boca da Barra Bocaccio Bocage Braga da Cruz Bragança-Miranda Bratislava Bruce Springsteen Bruto da Costa Bunheiro Bussaco Butão Cabral do Nascimento Camilo Castelo Branco Cândido Teles Cardeal Cardijn Cardoso Ferreira Carla Hilário de Almeida Quevedo Carlos Alberto Pereira Carlos Anastácio Carlos Azevedo Carlos Borrego Carlos Candal Carlos Coelho Carlos Daniel Carlos Drummond de Andrade Carlos Duarte Carlos Fiolhais Carlos Isabel Carlos João Correia Carlos Matos Carlos Mester Carlos Nascimento Carlos Nunes Carlos Paião Carlos Pinto Coelho Carlos Rocha Carlos Roeder Carlos Sarabando Bola Carlos Teixeira Carmelitas Carmelo de Aveiro Carreira da Neves Casimiro Madaíl Castelo da Gafanha Castelo de Pombal Castro de Carvalhelhos Catalunha Catitinha Cavaco Silva Caves Aliança Cecília Sacramento Celso Santos César Fernandes Cesário Verde Chaimite Charles de Gaulle Charles Dickens Charlie Hebdo Charlot Chave Chaves Claudete Albino Cláudia Ribau Conceição Serrão Confraria do Bacalhau Confraria dos Ovos Moles Confraria Gastronómica do Bacalhau Confúcio Congar Conímbriga Coreia do Norte Coreia do Sul Corvo Costa Nova Couto Esteves Cristianísmo Cristiano Ronaldo Cristina Lopes Cristo Cristo Negro Cristo Rei Cristo Ressuscitado D. Afonso Henriques D. António Couto D. António Francisco D. António Francisco dos Santos D. António Marcelino D. António Moiteiro D. Carlos Azevedo D. Carlos I D. Dinis D. Duarte D. Eurico Dias Nogueira D. Hélder Câmara D. João Evangelista D. José Policarpo D. Júlio Tavares Rebimbas D. Manuel Clemente D. Manuel de Almeida Trindade D. Manuel II D. Nuno D. Trump D.Nuno Álvares Pereira Dalai Lama Dalila Balekjian Daniel Faria Daniel Gonçalves Daniel Jonas Daniel Ortega Daniel Rodrigues Daniel Ruivo Daniel Serrão Daniela Leitão Darwin David Lopes Ramos David Marçal David Mourão-Ferreira David Quammen Del Bosque Delacroix Delmar Conde Demóstenes

Arquivo do blogue

Arquivo do blogue