Um texto de Anselmo Borges
1. Esta - a da espada de Dâmocles - é uma estória sábia. Cícero também se lhe referiu nas Tusculanae Disputationes.
Conta-se que Dionísio, tirano de Siracusa, que vivia num luxuoso palácio, com o poder todo e servos às ordens para tudo, tinha um amigo invejoso e bajulador. Que sorte a tua!, repetia-lhe.
O rei, cansado de o ouvir, propôs-lhe que o substituísse por um dia. E Dâmocles viu-se com uma coroa de ouro na cabeça e, cercado de honras, de luxo e de prazeres, julgou-se o homem mais feliz do mundo. Sentado à mesa, onde se servia um banquete lauto, com vinhos raros, perfumes e música, inebriado, levantou os olhos. E o que viu? Uma enorme espada flamejante, afiada e pontiaguda, presa ao tecto apenas por um fio, que pendia sobre a sua cabeça. Aterrado, todo o entusiasmo se esvaiu e o rosto empalideceu. Era essa espada pendente que Dionísio via todos os dias, na ameaça constante de algo ou alguém cortar o fio.
Não é sob a espada de Dâmocles que nos encontramos todos? Nós, os portugueses; nós, os europeus; nós, os habitantes do planeta - sete mil milhões?
2. Estamos num cotovelo da História: até aqui chegámos, e, agora, o que se segue? Pela primeira vez, vivemos verdadeiramente num mundo globalizado, cujo centro se desloca para o Oriente. E quem manda? Quem vai deter o poder?
De qualquer modo, é como se a Humanidade tivesse perdido o controle. "De facto", escreve Frédéric Lenoir, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, "já nenhuma instituição, nenhum Estado parece à altura de pôr freio à corrida no sentido do desconhecido - e talvez do abismo - para a qual nos precipitam a ideologia consumista e a mundialização sob a égide do capitalismo ultraliberal: acentuação dramática das desigualdades; catástrofes ecológicas que ameaçam o conjunto do planeta; especulação financeira descontrolada que fragiliza a economia mundial tornada global. Depois, há as transformações dos nossos modos de vida que fizeram do homem ocidental um desenraizado amnésico, mas igualmente incapaz de se projectar no futuro. Não há dúvida de que os nossos modos de vida mudaram mais durante o século passado do que durante os três ou quatro milénios anteriores."
Quando se está atento, percebe--se que, para encontrar algo de semelhante à revolução por que passamos, será necessário recuar até ao neolítico (uns 10. 000 anos antes da nossa era), quando se deu a sedentarização e os homens se dedicaram à agricultura e à criação de animais, ou até à primeira revolução industrial. Face aos novos desafios e à crise ampla e profunda, com catástrofes ecológicas, económicas e sociais que se anunciam, precisamos daquele "suplemento de alma" de que falou Bergson e que pode levar à "chance de um sobressalto, de uma renovação humanista e espiritual, mediante um acordar da consciência e um sentido mais agudo da responsabilidade individual e colectiva."
3. Seja como for, a História não está pré-escrita em lado nenhum. Só para dar um exemplo: quando se deu a queda do muro de Berlim, quantos não pensaram que estava iminente a chegada da paz perpétua? No entanto, é num mundo dramaticamente perigoso que nos encontramos. A própria democracia não é uma conquista definitivamente adquirida.
Mesmo entre nós, o recente primeiro grande estudo sobre a percepção da democracia não dá como consolidado o sistema democrático: só 56% dos portugueses dizem acreditar que o melhor sistema é a democracia e 15% vão declarando que, nalgumas circunstâncias, um governo autoritário é preferível a um sistema democrático.
E se, após tanta austeridade inevitável e a que ainda vai chegar, o país não arrancar para o crescimento económico e se acabarmos por ter de sair do euro e se se entrar em convulsões sociais e se for preciso um Governo de salvação nacional, a que reserva moral e institucional recorrer?
Aí está mais uma razão para considerar as recentes declarações do Presidente da República, que diz não ganhar para as suas despesas, desgraçadas e injustificáveis.