Um artigo de António Marcelino
É bom ter presente pessoas e aspetos significativos da iniciativa conciliar, bem como o contexto, social e eclesial, em que o Concílio surgiu e aconteceu. Muitos dos que, passo a passo, viveram o Concílio, padres ou leigos, em idade de vibrarem com a preparação e o decorrer do mesmo, se ainda vivem, na sua maioria, são pessoas com mais de setenta anos. Isto quer dizer que, passados cinquenta anos, a quase totalidade dos mais responsáveis hoje, na Igreja em Portugal, eram então muito jovens ou ainda nem tinham nascido. A memória histórica comporta, para todos, lições que é bom recordar, para compromisso no presente e ajuda no projetar do futuro.
João XXIII foi eleito Papa num conclave muito breve, apenas de quatro dias. Tinha 78 anos, e a gente mais atenta, de mistura com alguma desilusão, confortou-se ao pensar que se tratava de uma eleição de transição e de compromisso. Os cardeais eleitores olhavam para Montini, arcebispo de Milão, que não estava no conclave porque não era ainda cardeal. Isto não constituía impedimento à sua eleição, mas a tradição não era essa. O cardeal Roncalli, então arcebispo de Veneza, pela sua idade, pensaram os eleitores que seria sol de pouca dura e, por isso, podia eleger-se, sem se perder tempo, porque, se dele não se esperavam novidades, também, pela sua conhecida bonomia, não havia a temer qualquer mal para a Igreja.
Quem é o novo Papa e qual a sua história? Natural de uma aldeia rural da província nortenha de Bergamo, filho de uma família numerosa, trabalhadora e cristã, foi ordenado padre, serviu primeiro em Bergamo e depois em Roma. Aos 44 anos entrou, por obediência, no corpo diplomático. Foi visitador apostólico na Bulgária, durante dez anos, e, já como bispo, delegado apostólico na Turquia e na Grécia. Aos 63 anos, foi enviado para Paris, como núncio apostólico, onde permaneceu nove anos. Depois, já com 72 anos, é nomeado patriarca de Veneza. Apesar do seu itinerário, não foi nunca um homem da Cúria, nem um intelectual. Sempre um homem profundamente espiritual e crente, com uma manifesta vocação pastoral, que muitos desconheciam. Considerado pelas elites eclesiásticas romanas como “ingénuo e de poucas luzes” e sem perfil para suceder a Pio XII, ele só podia ser um Papa de transição e uma maneira airosa e rápida de resolver, sem percalços e por tempo breve, um impasse inesperado.
Eram outros os planos de Deus. Quatro meses depois de eleito, em 25 de janeiro de 1959, numa cerimónia solene que se realizava na Basílica de S. Paulo fora de Muros, em Roma, este Papa de poucos voos e menos esperanças, como se pensava, falou assim: “Pronunciamos diante de vós, tremendo um pouco de emoção, porém com humilde resolução de propósitos, o nome e a proposta de uma dupla celebração: um sínodo para a diocese de Roma e um concílio ecuménico para a Igreja universal, que levarão à atualização, augurada e desejada do Código do Direito Canónico… Faço um renovado convite aos fiéis das comunidades cristãs separadas a que nos sigam, também, nesta busca da unidade e da graça”.
O mundo cristão nem queria acreditar. Um concílio ecuménico? O último realizara-se em 1870, com o papa Pio IX. A partir daí, para Roma, estava tudo resolvido, uma vez que, nesse concílio, se declarara a infalibilidade do Papa. Doravante, o magistério pontifício bastava para conduzir a Igreja com as suas decisões e declarações. E assim foi até Pio XII. Então se compreende a razão porque este papa, que pensara convocar um concílio ecuménico, depois, em 1951, a conselho dos seus colaboradores imediatos, pôs de parte este projeto. Roma ficou preocupada com o anúncio do Papa. Pelo mundo fora, houve tanto um grande contentamento como alguma perplexidade. O caminho, porém, estava traçado. Durante os anos da preparação, João XXIII, à volta de um termo por ele usado e que se tornou famoso na Igreja, o “aggiornamento” , ou seja, o pôr a Igreja em dia, foi clarificando caminhos, objetivos e métodos de trabalho. Na sua perspetiva e vontade, o Vaticano II seria um concílio pastoral.
Das diversas intervenções do Papa, três objetivos do Concílio pareciam claros: revisão da Igreja, em si mesma e da sua imagem; abertura ao mundo moderno e à sociedade, mediante a leitura e o discernimento dos “sinais dos tempos” e consequente diálogo; unidade dos cristãos, com uma presença significativa da Igreja no campo ecuménico.