Um texto de Maria Donzília Almeida
Antes de...
Antes de a dona o ter posto fora de casa,
ele dormia a sesta na espreguiçadeira
e a noite num sofá! Era um lorde!
onde a dona colocou a alcofinha, mas ele prefere dormir nas bicas!
Coisas de cão orgulhoso!
Enjeitado
Por alguns sou rejeitado.
Pela m’nha dona preterido.
Mas qual será o meu fado...
Um cão que já foi tão querido!
Ão, ão... p’ra todos, um ano bom! (com sotaque tripeiro). Há muito que não dou um ar da minha graça, mas agora é que estou, sem graça nenhuma! Ando mesmo acabrunhado, a pensar nesta vida de cão, que passei a ter de há uns dias para cá. Antes, tinha uma vida de lorde e todos os cães vadios, que deambulavam pela rua, me invejavam! Antes, dormia na torre do castelo, sossegadinho da vida, confortável, quentinho e com um edredon de penas a aconchegar-me! Agora durmo na estufa das plantas, a coberto da geada, sim, mas bem junto da caruma e dos vasos arrumados a um canto. Ando triste! Quase ia parar às masmorras... alagadas de água no inverno, como o forte de Peniche! Não chegou a tanto, a crueldade desta amiga de Pen----
A minha dona bem tenta explicar-me que os motivos que a fizeram tomar aquela atitude, são de peso! Teve que fazer opções, apesar de eu não perceber bem o que isso é! A vida é assim, diz-me ela com ar pesaroso! Confessa que me trata como um filho, mas... existe uma coisa chamada hierarquia familiar! Desde que veio para cá o “bis-avozinho”, muita coisa mudou e entre duas relações chegadas, o fiel da balança cai para a mais pesada......em anos! Foi necessário criar condições de conforto e habitabilidade a uma pessoa cuja idade lhe traz alguns condicionalismos, diz a dona. A sua saúde, marcada por uma doença alérgica, tolera mal a existência de pêlos, por perto. Não que não goste de animais em geral e de cães em particular. Até fiquei a saber, que noutros tempos houve um Farruco, na casa do “bis-avozinho” e que por sinal era um bom cão de guarda! Percebi que a dona quer tratar muito bem aquele ancião, que já labutou muito pela vida e merece, agora, ter uma velhice tranquila, com os mimos que a vida lhe regateou. Aqueles que se descartam desta franja da população, ouço-a dizer, virando-se para os que são a promessa do amanhã, as novas gerações, revelam alguma miopia na observação dos valores e na transmissão dos mesmos aos mais novos. Para todos há lugar, disponibilidade, carinho... desde que haja boa vontade e amor!
Bem vejo, com certo ciúme, que a dona quase deixou de ter olhos p’ra mim, apesar de me dizer que continua a gostar muito desta coisinha fofa! Eu... bem quero acreditar... mas às vezes assalta-me a dúvida! Consequências de se ser filho único!
Para atenuar a dor da separação, ao pôr-me fora de casa, (!?) a minha alcofinha, o dormitório de exterior, foi cuidadosamente colocado na estufinha das plantas, para que eu tivesse algum conforto. Um cão é um cão, tem os seus brios, a sua dignidade, o seu pedigree... rejeitei a alcofa e fiz, colado a ela, um ninho meu, na caruma, vulgo bicas, que está, ali, armazenada. Também não levaram a melhor, vencendo o meu orgulho!
Eu bem quero defender os meus pergaminhos e até estou a pensar organizar uma marcha de protesto, contra a tirania dos donos! Assim....como aquelas manifestações dos trabalhadores, por ordenados mais justos ou até por melhores condições de trabalho! Aqui, nem por uma nem por outra razão, já que nem trabalhamos, nem somos assalariados! É apenas uma luta ideológica!
Para ganhar adeptos a esta causa e engrossar o protesto, estou a pensar, os cães também pensam (!?), ir ao canil municipal e fazer uma requisição civil de todos os sem-abrigo, que lá foram parar! Terei matilhas e matilhas a seguir-me e a ladrar contra: a irresponsabilidade dos donos que deixam nascer os cachorrinhos e depois os abandonam à sua sorte; a insensibilidade dos humanos; a irresponsabilidade dos poderes públicos que não criam um SNS, (Sistema Nacional Sanitário) para acolher e tratar das enfermidades deste setor da “população”. Ouvi uma vez dizer, nós temos ouvidos de tísico, que a qualidade de um governo, está na forma como trata os seus animais!
A minha dona até diz que eu lhe lancei uns olhos de carneiro mal morto, que eu saiba ela só tem cabrinhas anãs, p’ra ver se a convencia a mudar de ideias. Mas apesar de toda esta humilhação, hei-de continuar a andar de cabeça erguida, orelhas arrebitadas e a correr pelo jardim fora, no uso pleno da minha liberdade. Apesar de tudo... sou um cão livre e a vida continua!
16.01.2012