Os do Sul
Anselmo Borges
Se há país de que eu gosto, ele é a Alemanha. Tenho excelentes e queridos amigos alemães. O que eu sei devo-o em grande parte à Alemanha. É de lá que vem da melhor filosofia, da melhor teologia, da melhor música, da melhor matemática, da melhor física, da melhor literatura. A língua alemã é singular no forjar do pensamento.
Diz-se que os alemães são racionais, ordenados, quase marciais. Mas aí são os alemães na exterioridade e na organização social. Afinal, donde vêm o romantismo, as filosofias da vida, a descoberta do inconsciente? Então, por causa dessa vitalidade, precisaram do travão racional.
E aí estão as guerras, guerras mundiais, com todo o seu cortejo terrível de tragédia. Ouvi o grande Karl Rahner numa aula dizer que passou a vida a perguntar como tinha sido possível o horror de Auschwitz e não encontrou resposta. De qualquer forma, essa experiência foi e ainda é um nó na alma alemã. Eles não poderão esquecer as ajudas que então receberam para se reerguer. Mas a Alemanha também foi generosa. Sem ela, não haveria o que se chama União Europeia nem o euro.
Mas as circunstâncias são outras, há eleições, e até os políticos se precipitam. E lá vieram declarações desgraçadas: que os do Sul são preguiçosos, que se retiraria soberania aos incumpridores, com a bandeira nacional a meia haste.
Essa dos do Sul já vem de longe. Tem que ver com o choque com Roma, Kant refere-se-lhe a propósito dos Descobrimentos e do debate sobre a posse das terras descobertas, Hegel foi dizendo, numa abertura abrangente dos do Sul, que a África "não é uma parte do mundo histórico", que a Europa, concretamente a Europa do Norte, surge como o centro e o fim do mundo antigo e do Ocidente.
Depois, há a racionalidade económico-social, com raízes religiosas. É bem conhecida a tese de Max Weber, na sua famosa A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, querendo mostrar a ligação estreita entre a ética do protestantismo puritano do século XVII, referente ao trabalho e à profissão, e o aparecimento do capitalismo burguês moderno. Paradoxalmente, a transformação dos valores, que no início da modernidade desvinculou moralmente o êxito pessoal e a persecução da vantagem própria de outros valores que antes detinham o primado, tem uma das suas raízes na tradição religiosa cristã de orientação calvinista e zuingliana. O que antes era desaprovado, concretamente a persecução desenfreada de interesses comerciais e de negócios, transforma- -se, "com base no ethos económico capitalista-calvinista", num modelo de forma de vida que agrada a Deus, de tal modo que o aumento da riqueza económica é quase sinónimo de aumento da glória de Deus.
Por causa da doutrina calvinista da predestinação, abatia-se sobre as pessoas a angústia da incerteza da salvação. Como meio mais eficaz para atingir a sua certeza, "recomendava-se o trabalho profissional incessante, pois este e só este afastaria as dúvidas religiosas e daria a certeza da condição de eleito". A fé comprova-se na vida profissional secular. Em ordem à certificação da sua própria salvação, era necessário levar uma vida ascética, não já fora do mundo, em comunidades monásticas, mas dentro dele e nas suas instituições. "Esta racionalização da conduta no mundo com vista ao futuro extraterreno foi o efeito da concepção da profissão como vocação, que o protestantismo ascético tinha." O que Deus pede e exige não é o trabalho em si, mas o trabalho profissional racionalizado. A riqueza aparece, portanto, como sinal de que se é eleito para a salvação. "A riqueza só é condenável enquanto tentação do ócio e do gozo pecaminoso da vida." Neste contexto, o "espírito do capitalismo" nasce da conjunção do desejo de lucro e da limitação do consumo: a inibição de bens de consumo "favorecia a sua aplicação produtiva enquanto capital de investimento".
Num mundo global, encontramo-nos numa das situações mais complexas e graves da história humana. A Europa unida tem um papel decisivo para o futuro do mundo. Aos do Norte exige-se mais solidariedade e aos do Sul mais rigor.
No DN
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