Clamor dos pobres numa sociedade de ricos?
António Marcelino
«A situação económica é grave, muitas pessoas, por vezes as mais débeis, estão fortemente atingidas, a classe média, que antes vivia com um certo desafogo, embora com regras, encontra-se em derrapagem. Os problemas multiplicam-se, tanto mais quando não se enfrentam em conjunto. Quem tem de decidir encontra-se ante forças antagónicas que ou apoiam ou nada encontram de válido nas decisões anunciadas ou tomadas.»
Portugal está a tornar-se um mundo complexo, de leitura difícil, cheio de contradições e interrogações, com muitos opinadores desencontrados, muitas ideias que se entrechocam, muitos interesses em jogo, muita gente que mal ouviu e tem logo, debaixo da língua, respostas de apoio ou de contestação.
Quando se trata de acertar caminhos que deverão andar juntos, as divergências em campo, não se percebe se por ideologias, se por interesses pessoais e partidários, logo se dividem as pessoas e se estilhaçam os propósitos mais urgentes, de ir ao encontro de problemas, que são comuns a todos.
A situação económica é grave, muitas pessoas, por vezes as mais débeis, estão fortemente atingidas, a classe média, que antes vivia com um certo desafogo, embora com regras, encontra-se em derrapagem. Os problemas multiplicam-se, tanto mais quando não se enfrentam em conjunto. Quem tem de decidir encontra-se ante forças antagónicas que ou apoiam ou nada encontram de válido nas decisões anunciadas ou tomadas.
O bem da comunidade vê-se sempre parcelado, mais a partir de ideologias diferentes que de interesses comuns. Assim, cada um agarra-se à leitura pessoal ou de grupo, aos seus compromissos políticos, a perspectivas e preconceitos, sem o aparente desejo de uma solução que empenhe a todos. Há na vida, e, mais ainda, na vida nacional, momentos em que têm de se arrear bandeiras e darem-se as mãos, sacrificando algo de pessoal a favor do bem possível de todos. A política é acção do possível e o ideal torna-se o possível em cada situação e em cada circunstância. Parece, porém, que isto pouco tem a ver com o debate parlamentar e as organizações corporativas.
Certamente que os decisores devem saber ler objectivamente a realidade, escutar, sem preconceitos, os que devem ou podem dar achegas para ver mais claro e decidir com maior realismo. A democracia não gera dogmas, mas consensos, os possíveis, não os utópicos. A facilidade como se fala do povo vai-se tornando um ultraje ao mesmo.
As oposições que pensam e querem o bem da comunidade de algum modo também governam pelo contributo responsável e sério que delas é legítimo esperar. O clamor dos pobres depara-se, com frequência, com a barreira de inúmeros políticos e pensadores, de grupos e corporações, que mais deviam ouvir esse clamor e ajudar quem grita, que levantar muros de incomunicação. Nunca foi fácil, nem agradável, governar e decidir em tempos de crise. Estamos passando por uma situação igual àquela porque passaram outros países da Europa que, por fim, venceram, porque todos juntos foram capazes de procurar o melhor caminho possível e todos se decidiram andá-lo. Só as gerações mais jovens desconhecem talvez esta realidade.
A comunidade adulta, com memória e bom senso, não acredita e nunca acreditou nos que julgam saber tudo, terem toda a razão do seu lado e serem os únicos com lucidez para mostrar os caminhos certos. A verdade é que o poder democrático de decisão não está diluído. Tem rosto para poder ser responsabilizado, a seu tempo.
Tem feito falta julgar e responsabilizar quem governa e leva o país a situações dramáticas, como agora aconteceu. Os pobres não o são por opção, mas por um desgoverno que parece ter sido já esquecido, tanto por correligionários, como por opositores. Não há efeitos sem causas, e estas estão à vista. É normal que quem empresta ponha condições, e que quem precisa encontre um terreno de negociação limitado.
Certamente que é triste e duro ver o desemprego crescer, casais a entregar à banca a casa que não conseguem pagar, aproximar-se o Natal sem o habitual subsídio, diminuir no ordenado o que é indispensável para suportar despesas de educação inevitáveis, a mesma gente que perdeu também o abono de família e a bolsa de estudo… E muito mais por aí adiante… Mas tudo isto dará direito a alguém de se considerar o único defensor do povo a contrapor-se a quem se acusa ser o seu carrasco?
A sociedade de ricos é a daqueles que se julgam saber tudo, ter solução para tudo, negar-se à colaboração com os que apodam de criminosos, só porque estão no poder e as suas ideologias não se casam.
Os governantes não são génios, nem infalíveis. Mas também não o são os que parece que só sabem criticar. Se não formos capazes de ser inteligentes e colaboradores, a crise será cada vez maior e o clamor do povo sofredor não terá quem o ouça.