Uma história singular
Maria Donzília Almeida
O ensino primário, obrigatório, foi promulgado, no século XIX, mais precisamente, no dia 7 de Setembro de 1835. Por curiosidade, dei-me ao trabalho de analisar o Decreto do Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Reino: determina as matérias a serem ensinadas na Instrução Primária; estabelece que a instrução primária é gratuita para todos os cidadãos em escolas públicas; incumbe às Câmaras Municipais e aos párocos empregar todos os meios prudentes de modo a persuadir ao cumprimento desta obrigação, junto dos pais.
A partir daí, foram-se sucedendo os decretos e Cartas de Lei, que regulamentavam a institucionalização e obrigatoriedade do Ensino Primário. Dessa legislação emitida pelo governo, saltou-me à vista pelo insólito do texto, o Decreto do Governo de 28 de Setembro de 1884, que passo a transcrever: Os que faltarem a este dever, (Ensino Primário Obrigatório) serão avisados, intimidados, repreendidos e por último multados em 500 até 1000 reis; serão preferidos para o recrutamento do exército e da armada os indivíduos que não souberem ler nem escrever; serão criadas escolas especiais para meninas e definidos os objectos de ensino. Se por um lado se fazia o apelo ao cumprimento da escolaridade obrigatória, surge como algo paradoxal, a preferência para a defesa do estado, de indivíduos analfabetos! O poder legislativo, desde, há séculos, que se baseia na incongruência e omissão.
Foi neste contexto, de indefinição político-social, que decorreu a história que vou narrar. Em meados do século XIX, cerca de 1850, não havia escolas, nem professores, para ensinarem as criancinhas da Gafanha, a ler e a escrever. Eram poucos os que iam à escola, improvisada numa qualquer casa. No entanto, chegara-me aos ouvidos, a notícia de uma mulher do povo, que sabia ler, mas não sabia escrever. Intrigava-me aquela situação de semi-literacia! A Gafanha era um meio rural e piscatório, muito pobre, de modo que pouca gente ia aprender as primeiras letras. Reza a história que aqueles que já tinham aprendido, reuniam os aspirantes à alfabetização, num telheiro ou no pátio duma casa de lavoura e aí a aula decorria, sem a turbulência da escola de hoje. O espírito de partilha tão defendido, na escola atual.
Constata-se que a sociedade era machista, favorecendo os mancebos, em detrimento das meninas. Por isso, um grupo que aprendia a ler e escrever era, exclusivamente, composto por rapazes. Uma menina, Maria Gramata, que morreu em 1935 com 96 anos, que vivia por perto e que provavelmente, lá teria algum irmão, tinha uma vontade enorme de aprender. Contudo, impedida de o fazer, resolve imiscuir-se, no grupo dos rapazes e agachada, para não ser notada, ia espreitando como podia, para os livros dos companheiros. A pequena estatura da menina, favorecia-lhe aquela artimanha. Claro que não possuía pasta, nem qualquer outro material escolar, não fosse algum gesto imprudente trair a sua presença clandestina.
Deste modo, estamos perante uma criatura que sabia ler mas não escrever! Nunca pegara numa pena!
Provavelmente, algum sangue dessa menina, ainda me corre nas veias, pois... era a avó, da pessoa que hoje completa 92 anos,... o meu progenitor a quem felicito e desejo o melhor do mundo! A par da herança que me legou, está também a tenacidade que é a alavanca para realizarmos os nossos sonhos!
15.10.2011