O que resta do Pai?
José Tolentino Mendonça
«O que resta do Pai?», pergunta-se o psicanalista Massimo
Recalcati no seu oportuníssimo estudo sobre a paternidade na época pós-moderna.
A preocupação que partilha com os leitores é esta: resta muito pouco. E para
classificar os tempos que correm ele recupera uma expressão de Jacques Lacan:
«a evaporação do pai». De facto, a nossa cultura tem praticado, com razões mas
sem razão, uma demolição sistemática da figura do pai. O pai deixou de ser
referência de valor para avaliarmos o sentido, para delinearmos a fronteira do
bem e do mal, da vida e da morte. Vivemos muito mais uma suspeita permanente em
relação ao que o pai representa ou mergulhados num luto obsidiante, promovendo
o desencanto e a incerteza ao estatuto de novas formas de felicidade (e de
ilusão). O que defende Recalcati é que a figura do pai precisa de ser
recuperada.
Mas não basta reabilitar socialmente a paternidade: temos
também de ousar purificar criticamente determinadas imagens paternas. Por
exemplo, um dos clássicos da literatura europeia é a “Carta ao Pai”, de Franz
Kafka. É um libelo dolorosíssimo, de acusação e culpa, que reflete amplamente o
dilacerante processo interior em que Kafka viveu. Cresceu à sombra do pai, mas
transportando este nó terrível: por mais que fizesse, jamais corresponderia às
suas exigências e expectativas. O arranque da carta diz bem o drama que isto
provoca: «Querido pai, perguntaste-me recentemente por que afirmo ter medo de
ti. Eu não soube, como de costume, o que te responder, em parte justamente pelo
medo que tenho de ti, em parte porque existem tantos detalhes a justificar esse
medo, que eu não poderia reuni-los todos no momento de falar…. E se procuro
responder-te aqui por escrito, não deixará de ser ainda de modo incompleto,
porque mesmo no ato de escrever o medo e suas consequências me atrapalham
diante de ti».
Mas mesmo sem ir tão longe, como no caso de Kafka, há
imagens de pai demasiado condicionadas pelos esteriótipos da cultura envolvente
e que redundam num distanciamento e numa secura. O escritor António Alçada
Batista conta esta história exemplar, na primeira pessoa: «Uma vez eu fui
operado e estava só no hospital com meu
pai. Tinha uma dor pegada das unhas dos pés às pontas dos cabelos e meu pai
estava ao pé de mim. Eu tinha já 19 anos, mas apeteceu-me a sua mão humana e
paterna e disse-lhe:
- Deixe-me ver a sua mão.
- Para quê?
- Preciso da sua mão.
Ele sorriu-se e deu-ma, mas imediatamente começaram a funcionar
dentro de si as pesadas estruturas marialvas e académicas que recusam a um
filho de 19 anos a mão terna dum pai. E, disfarçadamente, começou a retirar a
sua mão até que a minha continuou pedinte mas só e unilateral.».
«Preciso da tua mão». O conhecimento do que é um pai só pode
ser um conhecimento vivido, profundamente experimental, qualquer coisa de
sensível que nos faz participar de qualquer coisa de absoluto.