O MILAGRE DO PERDÃO
Anselmo Borges
Já no avião, vindo de Santander, aonde fora participar num curso de Verão sobre "Transformação da Teologia na situação actual: pluralismo religioso e secularização", leio no El País um daqueles casos que nos dão o melhor da Humanidade.
Ameneh Bahramí é uma mulher iraniana de 32 anos, que não aceitou uma proposta de casamento com Majid Mohavedí. Por causa disso, este atirou-lhe ácido à cara, e ela não só ficou com o rosto desfigurado como perdeu a visão dos dois olhos. Um tribunal decidiu então aplicar a lei de talião, ainda vigente no Irão, e que Majid Mohavedí perdesse também a visão. Aplicação da lei de talião: olho por olho, dente por dente.
No passado dia 7 de Agosto, sete anos depois, estava tudo preparado, a própria televisão iraniana dispunha-se para dar conta do horror. Na sala de um hospital, Majid Mohavedí esperava de joelhos que Ameneh Bahramí executasse a sentença e deitasse nos olhos dele as gotas de ácido que o deixariam igualmente cego. Mas Ameneh Bahramí perdoou-lhe.
O jornal acrescenta que não renunciou ao que é conhecido como "preço de sangue" na legislação islâmica: uma compensação económica pela dor sofrida: 150 000 euros, que o autor da barbaridade deverá pagar, se quiser sair da prisão. E comenta que é verdade que ela foi pressionada pela Amnistia Internacional e outras organizações que defendem os direitos humanos para que concedesse o perdão que só ela podia conceder. Mas, "seja como for, fê-lo. E paralisou assim a abominável norma que consagra a vingança como medida com que fazer justiça".
Mesmo nas piores circunstâncias, ainda é possível a Humanidade erguer-se às alturas da generosidade. "O irreparável não pode remediar-se com mais destruição. É o que ficará do gesto desta mulher a quem destroçaram com ácido o rosto (e a vida)." E é esta grandeza que está também por trás da carta que um jovem de 16 anos que sobreviveu à matança de Oslo dirigiu a Anders Behring Breivik, o verdugo de tantos dos seus amigos.
Fracassaste, disse-lhe, "não respondemos ao mal com o mal".
Se houve tema no qual Jesus insistiu foi no do perdão. "Quantas vezes se deve perdoar?", perguntou-lhe Pedro. "Sete?" E Jesus respondeu: "Setenta vezes sete", isto é, sempre.
Porque o Deus de Jesus é o Deus do perdão, da bondade, da misericórdia. Mas, no fundo, raros são os cristãos que acreditam nesse Deus. Preferem o Deus que mete medo e se vinga. E a prova está em que se continua a oferecer a Deus sacrifícios, para implorar a sua misericórdia e compaixão. Mas como é que um Deus infinitamente bom - o Amor - pode precisar de sacrifícios para aplacar a sua ira e reconciliar-se com a Humanidade? Talvez porque, se Deus se vingasse, nós também poderíamos fazê-lo.
Quando se trata de perdão mesmo, é preciso reconhecer que estamos perante um milagre. Porque o perdão transcende a justiça e o jurídico: de facto, nem o verdugo tem direito a ser perdoado nem a vítima é obrigada a perdoar. É o dom e a graça. Por isso, Vladimir Jankélévitch distinguia, com razão, entre desculpa e perdão. A desculpa é condicional: depende da capacidade de compreender o mal feito, que se explica. O perdão é incondicional: depende do poder criador do amor, confrontado com a malvadez, esse enigma do mal querido livremente. "Por isso, as 'razões' de perdoar praticamente não são mais admissíveis que as 'razões' de crer; se perdoamos, é porque não temos razões; e se temos razões, há a desculpa, não o perdão." E isto não é permissivismo, pois o amor é o mais exigente que há.
Se pensarmos até ao fim, lembrando as vítimas inocentes, não será difícil vir à ideia que só Deus pode perdoar. Como escreveu o filósofo agnóstico Jacques Derrrida, perdoar o imperdoável aponta para algo que está para lá da imanência, "qualquer coisa de trans-humano": "na ideia do perdão, há a da transcendência", pois realiza-se um gesto que já não está ao nível da imanência humana. Aí começa o domínio da religião. "A partir desta ideia do impossível, deste 'desejo' ou deste 'pensamento' do perdão, deste pensamento do desconhecido e do transfenomenal, pode muito tentar-se uma génese do religioso."
Em DN
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