Estímulos e travões
no processo de recuperação
António Marcelino
Dizer que o momento que atravessamos é difícil não vai além
de repetir o que todos sabemos e vamos sentindo. É verdade, no entanto, que
para uns as dificuldades são maiores do que para outros. Sendo assim, não
podemos deixar de nos perguntar como consegue sobreviver uma família modesta
com um ou os dois pais desempregados ou um casal de idosos com uma reforma mais
do que magra. Muitas perguntas pertinentes se podem e devem fazer para se poder
interiorizar a crise. Multiplicam-se, é certo, as expressões de solidariedade.
Porém não é fácil a pessoas que sempre tiveram uma vida que se ia bastando por
si própria terem agora de recorrer a instituições para pedir alimento ou ajudas
que lhes permitam responder a despesas inadiáveis. O que toca na auto-estima
também empobrece as pessoas.
As medidas de restrição necessárias são sempre difíceis e
não se aceitam de bom grado. Enquanto alguns já se sentem esmagados, outros
continuam na ilusão de que, para si, as restrições ainda não chegaram e, quem
sabe, até podem não chegar. A atenção vai sobretudo para a gente nova, quando
não está habituada a sacrifícios que sempre atirou para os pais, ou estes lhe
ocultaram o peso e a solução dos problemas.
Não adianta chorar no muro das lamentações, nem continuar à
procura dos culpados, de todos bem conhecidos. A hora é de assumir a situação,
na parte que a cada um toca, como uma tarefa inadiável, a que é preciso meter
ombros. O peso toca mais a uns que a outros, e não há que atirá-lo, como tantas
vezes acontece, para os eternamente fragilizados e provados pela vida. A
equidade e a solidariedade são regra e completam-se quando, no horizonte das
decisões, estão pessoas e situações concretas.
O sentido colectivo de responsabilidade é um dever comum de
cidadania. Esta não é proclamação de comício, nem é um emblema de lapela.
Porém, se as dificuldades são de quem as sente, não podem parecer que o não são
de quem tem de decidir neste difícil contexto. Por tudo isto, não se pode
perder na rua o que se vai tentando construir, dolorosamente, na casa de cada
um e nos gabinetes dos decisores, presos por compromissos inadiáveis e vendo
já, ali ao lado, casas a ruir e a arder.
É legítimo lutar por um lugar de trabalho, denunciar os
desvios de quem se aproveita dos momentos de crise, chamar a atenção para a
realidade presente na consideração dos problemas e na procura das melhores
soluções, pôr a descoberto situações de injustiça, unir esforços para melhores
resultados. Mas, sempre na preocupação de encontrar caminhos e lançar pontes,
nunca de levantar novos muros ou de aprofundar, mais ainda, fossos já antes
difíceis de transpor. A união de forças não se faz apenas em função e proveito
de grupos, mas do melhor bem possível, a favor de todos.
Já escrevi antes que, nesta hora, e penso que em todas as
horas, quem governa e também quem é governado não pode deixar de estar atento
às descriminações e privilégios, à pressão das organizações corporativas,
quando mais voltadas para os seus membros que para a consecução do bem comum, à
tentação das atitudes demagógicas. Tudo isto pode provocar tensões, dificultar
o espírito de colaboração e de convivência democrática, impedir soluções justas
para os problemas em campo.
Ao falar de estímulos e travões no processo de recuperação,
tenho presente esta realidade. Pelos anúncios e ameaças feitas, penso agora,
especialmente, nas organizações corporativas, sejam elas partidos políticos,
sindicatos ou ordens. Normalmente olha-se mais para o que se pretende do que
para ver se isso é possivel e para os meios para se conseguir. Nem sempre e em
tudo, os fins justificam os meios. Também não se pode dizer ao país que ou se
ganha na sala de reuniões ou se faz guerra na rua. Não interessa ganhar mais
sócios ou prender os que podem fugir, criando um clima que não permite ir mais
além na solução dos problemas do país, tal como ele se encontra.
Há reivindicações que não mudam de tom quando a
intransigência permanece e os interesses corporativos cavalgam o processo. Pode
a vitória estar em impedir que se faça o que tem de ser feito? Sabemos que para
responder a projectos de colectivos sociais, seria necessário um governo da cor
de quem projecta. Isso, por agora não existe, nem se vê estar próximo. Não
havendo alternativa, têm de jogar no tabuleiro da democracia, não no da
demagogia, tanto os governantes como as corporações.
A conquista de direitos, em si legítimos, tem de ser
considerada no contexto concreto que se vive no país. Decisões de gabinete ou
multidões na rua, por si só não ganham batalhas. Antes, podem dificultar a
participação, socialmente exigida a todos. Não interessa nem a política da
terra queimada, nem o orgulhosamente sós. Já todos sabemos o que isto significa
e não estamos, por certo, ansiosos por um retorno.