A metáfora dos nossos dias:
21 de Maio de 2011
Maria Donzília Almeida
O dia amanhecera cinzento. “Um anímico véu de mistério cinzento,” citando Oliveiros Louro, parecia abater-se sobre a planície das Gafanhas. Era a natureza a associar-se, como elemento premonitório daquilo que estava para ocorrer.
Na mente, revolvia-se a cena tantas vezes evocada, da ida do ancião para o monte. Reza a história que encontrando-se às portas da morte, um pobre homem fora transportado para o monte, onde acabaria os seus dias, à mercê das intempéries e das aves de rapina. No momento da despedida, divide a manta que lhe fora deixada para se proteger, nas duras noites de inverno, em duas partes e entrega-a ao filho, dizendo: — Toma lá, é para usares quando os teus filhos te vierem trazer aqui!
Por muito cruel que pareça, esta história retrata bem a tristeza e abandono a que são sujeitos os idosos das sociedades modernas. Têm sido noticiados, nos últimos tempos, casos verdadeiramente dramáticos de pessoas solitárias que acabam por morrer ao abandono nas suas casas. Há referências, também, a familiares de pessoas idosas e doentes, que os despejam nos hospitais, por altura das festas em família. Por maior que seja o repúdio que sentimos por atitudes desta desumanidade, elas continuam a ocorrer com a frequência que a insensibilidade das pessoas consente.
É evocada, aqui, a metáfora do ancião no monte, a propósito duma cena semelhante que iria ocorrer, neste sábado, em contexto familiar.
Chegado à fase final da sua peregrinação na terra e vendo minguar as forças, dia para dia, decidira, na sua lucidez amarga, não afectada pelo tempo, que deveria ser levado para o “monte”. A diferença entre a cena narrada anteriormente e a actual é que nenhum descendente tomara a iniciativa de o rejeitar. Pelo contrário, todos se opunham à sua saída de casa. A decadência física, da sua idade quase centenária, anunciava-lhe uma dependência dos familiares, que repudiava categoricamente.
Quem sempre vivera, com a dignidade duma vida íntegra, não aceitava, de ânimo leve, ficar na dependência dos filhos. “As árvores morrem de pé!” era o lema da última batalha a travar, no sopro de vida que ainda o alentava. Decretara que queria ser levado para um lar, já que a sua prole se encontrava dispersa e/ou impossibilitada de lhe dar assistência, por motivos geográficos e laborais e opunha-se tenazmente a dar qualquer incómodo aos seus descendentes.
Nunca como nos tempos modernos o semantema lar ganhou uma abrangência polissémica tão alargada. De “Home sweet home”, o termo evoluiu para o seu antónimo, onde a doçura do primeiro é convertida na amargura de um lar de idosos ou de 3ª idade, no contexto social e familiar da sociedade hodierna. Mudam-se os tempos... mudam-se os lares! Aqui, nas Gafanhas, até a boroa cozida nos fornos, a lenha, tinha lar! (A parte que pousava na pedra do forno e trazia resíduos de brasinhas incrustados na côdea.)
Fora marcada para este sábado, esse depósito (!?) do pai na referida instituição e tudo se preparava para satisfazer a firme vontade do progenitor.
Quando se preparava para consumar a sua última visita à casa paterna, onde o pai vivera quase três anos em parcial solidão, eis que surge um dado novo nas disposições finais. Duma conversa havida entre sogro e o genro, envolta em algum secretismo, inesperadamente a situação mudou e… o lar amargo foi substituído pela casa duma filha, aconchegante e receptiva Ninguém assistiu ao diálogo, não foi gravado, não foi difundido, mas, sem dúvida que foi muito persuasivo. Para justificar a viragem na sua decisão, proferiu num misto de lamento, eivado de gratidão: — Um homem chega a uma idade, em que já não manda mais nele!
Alguém, com uma projeção clara do futuro e um humanismo, incomum nos nossos tempos, conseguira reverter a metáfora dos nossos dias! Deu-se o regresso ao lar, doce lar! A vida é uma caixinha de surpresas!
27.05.2011