sábado, 26 de março de 2011

A linguagem é um bem maior


Homem: animal que fala

Anselmo Borges

Entre as características ou "notas" que distinguem o ser humano dos outros animais, uma é determinante: a capacidade simbolizante, de tal modo que antropólogos, como E. Cassirer ou P. Laín Entralgo, o definiram, respectivamente, como animal simbólico e animal simbolizante.
O animal vive dentro do esquema estímulo-resposta. Com o homem, dá-se uma mudança qualitativa, já que, entre o estímulo e a resposta, se introduz o sistema simbólico. Ora, como escreve Gabriel Amengual, que sigo, esta nova aquisição transforma a totalidade da vida humana, pois, assim, o homem "já não vive apenas num puro universo físico, mas num universo interpretado, um universo simbólico". O homem, ao contrário dos outros animais, não vive na pura imediatidade das coisas, pois tudo lhe aparece interpretado, dotado de significado e valor. "Vemos a realidade através da linguagem, da cultura, da ciência, das crenças, etc."
Como já tinha visto Herder, sem o simbolismo, o homem seria como o prisioneiro da caverna de Platão, que só vê sombras e não significados. Cá está: os outros animais também comunicam e podem resolver problemas, mas sempre no quadro de uma imaginação e inteligência práticas, no sentido da sobrevivência. Falta- -lhes a inteligência e a imaginação simbólicas, que dão ao homem acesso à reflexão, ao pensamento abstracto e ao mundo da cultura: mundo poético, imaginativo, mítico, religioso, artístico, científico, matemático, filosófico.
No símbolo, como diz o étimo grego (sym-bállein: reunir, em contraposição a dia-bállein, donde provém diabo: desunir), há a união de dois aspectos: o significante e o significado, um signo visível (o significante), que remete para e evoca algo outro (o significado). No símbolo, temos duas partes: uma concreta, sensível, perceptível (o significante) e outra ausente, não sensível, inefável e invisível, da ordem do não representável directamente (o significado): o amor, o inconsciente, o metafísico, o mistério, o sagrado.
Inserida no mundo simbólico e simbolizante do homem, quais são as características da linguagem humana enquanto definidora do homem como animal linguístico, animal que fala? À partida, é preciso reconhecer que um corpo que fala, que produz sons, dentro de uma língua realmente falada, portanto, dentro de um sistema de signos articulados segundo regras, para designar e evocar algo com sentido, é um corpo que dará sempre que pensar.
O que define a linguagem humana falada como o próprio do homem é a sua dupla articulação em unidades significativas (monemas) e unidades distintivas (fonemas). Se disser: "dói-me a cabeça", há aqui uma proposição que articula várias palavras, transmitindo um sentido compreensível por quem dominar a língua portuguesa. Explicitemos.
A primeira articulação refere-se ao facto de a linguagem humana poder ser decomposta em palavras (monemas), tendo cada uma significação diferente. Assim, com alguns milhares destas unidades significativas ou monemas, combinados segundo regras, temos um capacidade ilimitada de comunicação. Por exemplo: "dói-me a mão", "dou-te a mão".
Para lá desta articulação de unidades significativas, a linguagem humana articula-se em unidades não significativas (sílabas e elementos de sílabas, vogais ou consoantes). Estas unidades fónicas (fonemas) que fazem com que se distingam os monemas é a segunda articulação: por exemplo, casa, rasa, caso, cala, colo. Se a primeira articulação permite já uma enorme economia, a segunda muito mais: imagine-se o que seria, se a cada unidade significativa mínima tivéssemos de fazer corresponder uma produção vocal específica! Este segundo tipo de articulação "deve considerar-se como característica exclusiva da linguagem humana".
Pela linguagem, abrimo-nos ao mundo, ao ser, à história, ao que há e ao que não há, a possibilidades, à Transcendência, distinguimos entre o bem e o mal, estabelecemos comunidade, tornamo-nos humanos. Cada língua é um mundo, de tal modo que a posse de várias línguas dá mais mundo. A linguagem é um bem maior, que pode ser perigoso: cria e destrói.

In DN

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