terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Não nos sentamos à mesa só para comer


O que é uma refeição?


José Tolentino Mendonça

Já nos escritos de Plutarco se lê que não nos sentamos à mesa simplesmente para comer, mas para comer com, e esta convivialidade vem a constituir, por exemplo, no quadro de valores do mundo clássico, um fator que distinguia o homem civilizado do bárbaro. Mas a história da refeição começa, certamente, muito antes. A vida dos indivíduos ou dos agregados humanos encontrou, desde sempre, no espaço da refeição um momento privilegiado da sua construção. À volta da mesa celebram-se os eventos fundadores, os nascimentos, os ritos de passagem, os triunfos, mas também o luto, as crises ou a prova. A mesa torna visível e edifica a intimidade familiar. Os amigos sabem que essa permite uma qualidade de encontro que lhes é própria. Dos negócios tem-se a ideia que a mesa os favorece, tal como a busca de resolução para os conflitos mais diversos. É curioso que a euforia comercial com que as nossas sociedades promovem os tempos simbólicos acalma-se, por fim, em torno de uma refeição (é assim no Natal). E, talvez por isso, à mesa pese mais a solidão ou a incomunicabilidade em que muitos vivem.
A refeição é um momento de grande espessura comunicativa, se pensarmos que ela tem as virtualidades de um espelho: aí se colhem alguns dos códigos que nos são mais intrínsecos. Ela funciona como uma espécie de lugar simbólico, um microcosmos que reflete práticas, interditos, tráficos de afeto e de sentido. Bastaria dizer isto: ao observarmos o modo como se desenvolve uma refeição, ficamos na posse da estrutura, valores e prioridades de um determinado grupo humano, bem como dos limites que esse estabelece com o mundo que o rodeia. Acreditam os antropólogos que, quando se chega a perceber a lógica e o conteúdo dos alimentos, bem como a ordem que regula a mesa (com quem se come, onde se come, a lógica dos diversos lugares e funções em torno da mesa, etc), alcança-se um conhecimento humano fundamental.
A mesa é um momento de excelência para a revelação de si, pois todo o comensal traz como dom a narração da sua história. A hospitalidade experimentada em torno da mesa instaura um implícito pacto de linguagem. É um espaço / tempo onde o contar se realiza no contar-se. Diante dos que escutam, abre-se a possibilidade de cada um se dizer, e assim, de recompor fragmentos, enlaçar fios distantes ou recuperar aqueles quebrados, encontrar palavras que segredem a íntima arquitetura da vida. Ulisses, por exemplo, nas diversas etapas do seu retorno a Ítaca, assume o estatuto de comensal, e vai aí revelando, progressivamente, a sua identidade. A ele pediu o rei dos Feácios: «Meu hóspede, não me ocultes o que te vou perguntar; fala com franqueza! Diz-me como na pátria o teu pai e a tua mãe e os outros homens da cidade te chamam... Nomeia também a tua terra, o teu povo e a tua cidade...». É verdade que à mesa não nos alimentamos apenas ao mesmo tempo e dos mesmos alimentos. Alimentamo-nos uns dos outros. Somos uns para os outros, na escuta e na palavra, no silêncio e no riso, no dom e no afeto, um alimento necessário, pois é de vida (e de vida partilhada) que as nossas vidas se alimentam.

 
In Diário de Notícias da Madeira e SNPC


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