Ruínas de uma guerra e ódio destruidor
de uma liberdade não preparada
António Marcelino
Fui há poucos dias à Guiné-Bissau, em missão de solidariedade fraterna, depois de lá ter ido, já lá vão quase quarenta anos, numa difícil e perigosa missão pastoral. Então, era a guerra. Agora, a muita miséria à vista, onde ressalta o esforço heróico de abnegados reconstrutores, uns que aí vivem de há anos, outros que vão por um tempo, todos procurando dar prioridade ao essencial: a educação, a saúde, a reconciliação lenta de etnias e religiões, o acolhimento a um voluntariado preparado e generoso, a coragem de não desistir nunca ante o que faz falta, ainda que conseguido com dores e lentidão. Tudo aquilo que se vê com algum futuro é fruto da iniciativa possível, sobretudo das instituições religiosas, porque outra iniciativa, bem urgente, como a da criação de pequenas e médias empresas que garantam trabalho, não encontra garantias de sucesso, dada a falta de segurança, de apoio, de rumo, de esperança.
País adiado
A Guiné-Bissau aparece-nos, em aspectos fundamentais, como um país ainda sem rumo certo, nem pressa de o encontrar, onde as pessoas vão vegetando, entregues a um provisório, que se vai tornando definitivo. De quem manda, se acaso há aí alguém a servir o povo, tudo sem pressa, a menos que se espere gente de fora a quem é preciso dar a imagem de um progresso que, de facto, não existe.
A riqueza mais visível da Guiné-Bissau são os muitos milhares de jovens e crianças. Património humano e natural que se está deteriorando de muitas maneiras pela falta de empenhamento presente, de perspectivas de futuro, de ocupação estimulante, de um trabalho que impulsione a viver, a crescer e a produzir.
O primeiro bispo da diocese, criada depois da independência e que ocupava todo o país, foi um franciscano italiano, D. Septímio Ferrazzetta, missionário que já aí vivia e trabalhava desde há anos, conhecia bem a realidade, viu os horrores da guerra e recebeu, com a chamada ao episcopado, um nação em ruínas e sem meios. Dotado de um coração onde o amor ao povo não tinha limites, de uma fé em Deus que era o segredo da sua coragem frente aos empreendimentos inadiáveis, de uma lucidez nos processos de acção, de uma capacidade exímia para convocar quantos, de perto e de longe, podiam colaborar com ajudas indispensáveis, foi, todos hoje o reconhecem, o primeiro cabouqueiro de uma restauração lenta, mas promissora, que foi de novo implantando e enraizando a comunidade cristã no seio de uma comunidade humana, necessitada de estímulos e de sinais de esperança, concretos e visíveis. Colhi dele a frase emblemática da sua dedicação, gravada no liceu João XXIII, que criou e que é hoje a melhor escola de Bissau. Diz assim: “Melhor que todas as construções é construir o coração do homem”. O mais difícil, por certo, mas o mais indispensável.
Saúde e educação
Logo depois vieram mais escolas, centros de formação profissional, hospitais e maternidades, apoios aos mais desprotegidos, iniciativas que pudessem gerar fraternidade e reconciliação, voluntariado organizado e colaboração sem reservas nem fronteiras. Hoje, na Guiné, país com maiorias muçulmanas e animistas e onde os cristãos são minoria, a acção da Igreja traduz-se em oásis activos e vivos, no meio de um deserto, que não gera nem vida nem esperança.
Um famoso hospital de leprosos, hoje com muitos doentes de sida e tuberculose, é dirigido por um padre franciscano português, médico, que, com um sorriso de ”Paz e Bem”, espalha cuidados, acolhimento, serenidade, alegria, esperança e competência profissional. Um hospital, modesto, mas asseado e lindo, que se transformou em lugar de apelo a médicos e enfermeiros de Portugal, que ali vão, em grupo e a seu custo, para fazer as cirurgias possíveis, durante uma semana, num trabalho sem horas e numa dedicação sem limites.
Voluntariado
Encontrei na viagem, com a alegria de saber que iríamos ser hospedados na mesma casa da diocese, um grupo de voluntários italianos que viajavam à sua custa e iam terminar as obras de restauração de um orfanato, assaltado e abandonado após a independência. Desde 2007 que tomaram a obra à sua conta e foram resgatando, gratuitamente, de ruínas abandonadas durante anos, com o apoio da sua paróquia e de outros amigos da Itália, o que por fim se tornou num lindo edifício, entregue à Diocese, equipado e mobilado, para poder receber crianças órfãs, ainda antes do Verão. Outros grupos de voluntários de Portugal e da Itália, de gente activa, jovens e adultos, homens e mulheres, mas, sobretudo, de reformados, chegam, trabalham sem horário os dias de que dispõem, ensinam os nativos residentes, regressam felizes.
“Construir o coração do homem”
Cada dia dou mais por mim a pensar se a Guiné, apesar da sua pobreza natural, que é evidente, não seria hoje um país diferente, se o tempo do colonialismo tivesse sido um tempo de promoção humana e social, de responsabilização, de valorização das pessoas e dos bens naturais disponíveis, um tempo de serviço e de respeito pela cultura e costumes locais? Muitos dos que já lá estavam e continuam agora, os missionários, sabiam como fazer e tentavam esse caminho com o povo. Ou foram, então, expulsos, ou viram destruídas as obras que serviam o povo e eram fruto de muito trabalho, generoso e abnegado. Outra gente, que por lá passou, nunca encarnou a realidade, abusou do poder, espalhou morte, viu mais os seus interesses que o das pessoas que ali viviam, para se libertar a si, criou escravos. Muito mal feito o que era urgente fazer e nunca o faria a guerra. A história da descolonização, necessária e justa, na Guiné e não só, mostra que nem sempre se respeitou o serviço às pessoas, à sua terra e à sua cultura. Era a única justificação para estar lá. As comemorações recentes, feitas com largo tempo de antena televisiva, com histórias pessoais a querer passar por heróicas, não falaram do presente, mostrando o fruto apodrecido de uma acção desumana e de uma decisão pouco responsável. A Igreja lá continua em campo, com generosidade e esperança, a mostrar que o mais importante será sempre “construir o coração do homem”. Missão só possível, quando a educação se assume como um serviço de amor, quando o outro é uma pessoa e um irmão. A lição também vale para cá e para hoje.