António Marcelino
A democracia não é pertença nem feudo de ninguém. É uma forma de ordenar a sociedade, a participação dos cidadãos e o exercício do poder, de modo a não excluir ninguém, nem se ser excluído por ninguém. Quando se fala da “nossa democracia”, como agora por aí se gritou por todo o lado, ouvindo quem grita, logo fica à vista que há uma democracia que não é a mesma de todos nem para todos, mas é só daqueles e para aqueles que elaboraram a actual Constituição a seu jeito, e agora a consideram intocável, a ponto de votarem contra sempre que se fala em a rever. No seu sábio entender, quem não é do mesmo jeito é cidadão perigoso e político a abater.
Qualquer pessoa instruída sabe que a Constituição deixou mutilada, logo no início, a ideia de uma democracia plena, expressa na vontade livre do povo, quando nela decretou o caminho obrigatório “rumo ao socialismo”. Logo ali se deixou de respeitar o povo que, liberto de correntes, era de novo acorrentado pelos que se arvoraram em seus donos, mesmo quando gritavam que “o povo é quem mais ordena”. O receio da primeira hora pode ter tido influência no esconjurar dos fantasmas de um passado recente. Mas, volvidos que são mais de trinta e seis anos, os fantasmas do medo de se voltar atrás, já só existem na cabeça de quem não pensa e quer, bem à maneira dos poderes totalitários e estatizantes, que o país ande a seu mando e a seu gosto. A ser assim, o governo de Sá Carneiro, por exemplo, terá sido anticonstitucional porque, escolhido em eleições livres, derrotou a opção socialista… Talvez por isso, só depois que o calaram, alguns democratas respiraram fundo.
As ameaças que se fazem e os gritos de escândalo que se gritam quando se fala em rever a Constituição, tornando-a expressão e apoio de uma democracia completa, põem a descoberto os receosos de perder poder e os incapazes de lutar, em regime de uma total e igual liberdade. É tempo de parar para pensar e se acabar com os chavões e os fantasmas. Os partidos políticos, que a democracia justifica, têm medo dela?
Certamente que o Estado tem uma responsabilidade social que não pode alienar, nem menosprezar. Ele é, através do governo, garantia de direitos e resposta adequada aos mesmos, a favor de todos os cidadãos, contando com a sua participação. Quando se fala de Estado Social omnipotente, esquece-se que ele nunca o é nem pode ser. Quando tenta tal caminho, a seu tempo esbarra com impossibilidades e incoerências, acabando por se refugiar em arbitrariedades injustas de um poder desvirtuado.
O Estado não se identifica com o governo, mas com o conjunto nacional. Ao governo compete assegurar aos problemas respostas devidas e justas, fomentar a participação de todos, promover e respeitar a subsidiariedade dos cidadãos e das instituições na procura do bem comum, fazer crescer o povo e não o aprisionar, nem o comprar com favores ou manipulações, esquecendo os seus legítimos direitos e deveres.
O Governo que se propõe fazer tudo sozinho, não querendo dos cidadãos senão o seu dinheiro, é um governo prepotente e sem futuro, que conduz o país para a miséria imerecida. Se os governantes com vocação totalitária estiverem atentos à história, passada e recente, e a souberem ler com sabedoria, depressa vêem o seu logro.
Sem a participação da sociedade civil, ou o mesmo é dizer, da participação e iniciativa dos cidadãos, devidamente enquadrada, os governos só resistem, temporariamente, por via da força que detêm, que é sempre uma fraqueza. É lamentável ver membros do Governo a dar, só porque o chefe assim manda, razões sem fundamento para defender medidas injustas. No fim, só porque no pendor ditatorial dos governantes não entrou a razão nem a concepção do que é um país livre e uma democracia civilizada.
Não há, não pode haver, como alguns querem, a “nossa democracia, tal como a temos na Constituição”. A revisão urgente da Constituição tem de a libertar do projecto antidemocrático dos que se julgam donos do povo. Em coisas de todos, todos têm a sua palavra pessoal e directa, sem precisarem de delegados ou de tutores. Prévias às opções ideológicas há razões universais e valores não vendáveis. Só com estes por alicerce se pode construir a casa de todos, onde todos caibam e se sintam felizes. A liberdade constrói-se num pluralismo legítimo, não num seguidismo açaimado.
A democracia não é uma solução perfeita e acabada. Entre todas as formas políticas de um regime, como dizia Churchill, ela é a menos má. Pode aperfeiçoar-se, e isso é missão de todos os cidadãos, se os governos deixarem e não o impedirem.