Público, 2010-12- 31
Bernard-Henri Lévy defendeu esta semana, no El País, que "os cristãos formam hoje, à escala planetária, a comunidade perseguida de forma mais violenta e na maior impunidade". Mais: "enquanto o anti-semitismo é considerado um crime e os preconceitos anti-árabes ou anticiganos são estigmatizados, a violenta fobia anticristã que percorre o mundo não parece ter qualquer resposta".
Curiosas palavras vindas de um não-cristão, interessantes considerações proferidas por quem, em tempos, ajudou a fundar o SOS-Racismo. E singularmente coincidentes com as de Bento XVI, que, na sua mensagem a propósito do próximo Dia Mundial da Paz, também notou que "os cristãos são, actualmente, o grupo religioso que padece o maior número de perseguições devido à própria fé".
São raras as notícias sobre estas perseguições, mas isso não significa que elas não existam - apenas que não lhes é dada a importância que merecem. Parece mesmo existir uma espécie de sentimento de culpa que leva a que, ao mesmo tempo que se destacam os ataques aos crentes de outras religiões, se subvalorizam aqueles de que são vítimas os cristãos - católicos, ortodoxos, evangélicos, baptistas e por aí adiante.
Vejamos alguns exemplos recentes. Na Nigéria, o Natal foi marcado por uma série de atentados, de que resultaram 86 mortos, todos reivindicados por uma organização islamista. Em Hanói, as autoridades proibiram uma celebração protestante e a polícia carregou sobre os crentes que rezavam na rua. No Azerbaijão, foi aprovada legislação que aumenta as multas aplicáveis a todos os grupos que tenham actividade religiosa sem antes se terem registado oficialmente. No Paquistão, uma mulher cristã, Asia Bibi, foi condenada à morte por blasfémia. No Irão, foram muitos os cristãos que passaram o Natal na cadeia, alguns deles acusados de apostasia (terem trocado a fé muçulmana por outra). Pouco antes do Natal, um grupo de cristãos coptas foi morto no Egipto perto da sua igreja. Nas Filipinas, uma bomba feriu 11 pessoas durante uma missa no dia de Natal. Na cidade chinesa de Chendgu, a polícia invadiu uma igreja na véspera de Natal e levou presos 17 crentes, incluindo uma mulher grávida. Na Índia, ocorreram ataques contra comunidades cristãs conduzidos por fundamentalistas hindus. E, no Iraque, onde a intensidade do ataque às comunidades cristãs tem levado a um êxodo em massa, várias cerimónias natalícias foram canceladas após terem sido recebidas ameaças de grupos ligados à Al-Qaeda.
Bernard-Henry Levy acrescenta a estes muitos outros exemplos, incluindo a prisão de uma jovem internauta na Palestina de Mahmud Abbas, a tentativa de assassinato do arcebispo de Kartum, Gabriel Zubeir Wako, a perseguição aos cristãos evangélicos da Eritreia, ou a morte a tiro do padre Christian Bakulene na República Democrática do Congo. O terrível destino da comunidade de monges franceses que vivia num mosteiro católico na Argélia e foi assassinada por um grupo de fundamentalistas islâmicos, e que Xavier Beauvois nos conta no belíssimo filme Dos Homens e dos Deuses (ainda em exibição), está longe de ser um exemplo isolado de violência sectária.
Não faltará quem, como alerta o filósofo francês, esteja pronto a fechar os olhos perante estes crimes lembrando o antigo estatuto de religião dominante do Cristianismo. É um disparate imenso, sob todos os pontos de vista. Primeiro, porque todas as vidas humanas têm o mesmo valor, e nada nos permite diminuir a integralidade de qualquer ser humano, seja ele hindu, muçulmano, ateu ou cristão. Depois, porque se é verdade que os cristãos, como tantos outros, promoveram "guerras santas", não se pode ignorar que a emergência dos valores modernos da liberdade, da igualdade e da dignidade humana medrou em sociedades cristãs, nelas tendo ganho corpo e foros de cidadania muito antes de tal ocorrer noutras civilizações. É bom recordar, por exemplo, que na primeira república democrática moderna, os Estados Unidos, a liberdade religiosa antecedeu a liberdade política e, como justamente notou Tocqueville, a forte presença da religião na sociedade não impediu a criação de um Estado forte e separado das igrejas.
Bento XVI, que dedica precisamente a sua mensagem de 1 de Janeiro de 2011 à liberdade religiosa, nota que esta se radica "na própria dignidade da pessoa humana" e está "na origem da liberdade moral", pois se estabelece que "cada homem e cada grupo social estão moralmente obrigados, no exercício dos próprios direitos, a ter em conta os direitos alheios e os seus próprios deveres para com os outros e o bem comum", como proclamou o Concílio Vaticano II. Invocando a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o Papa defende que excluir a religião da vida pública torna mais difícil "orientar as sociedades para princípios éticos universais" ou "estabelecer ordenamentos nacionais e internacionais nos quais os direitos e as liberdades fundamentais possam ser plenamente reconhecidos e realizados".
Na mira do chefe da Igreja Católica está um laicismo radical que se traduz na "hostilidade contra a religião" e numa limitação ao "papel público dos crentes na vida civil e política". É neste quadro que Bento XVI não se limita a desejar que terminem as perseguições sectárias aos cristãos na Ásia, em África ou no Médio Oriente, mas também faz votos para que "cessem no Ocidente, especialmente na Europa, a hostilidade e os preconceitos contra os cristãos pelo facto de estes pretenderem orientar a própria vida de modo coerente" com os seus valores.
Em causa não está a laicidade das instituições ou o direito de crítica, que no Ocidente é exercida com veemência sem que suscite apelos à censura por parte das igrejas cristãs (ao contrário do que sucede com os muçulmanos). Em causa está, isso sim, saber se é legítimo despedir uma enfermeira em Inglaterra porque esta insistiu em usar um crucifixo. Ou se, também em Inglaterra, é legítimo levantar um processo contra um psicólogo que distribuiu aos seus colegas de serviço um desdobrável sobre os efeitos negativos do aborto com base no argumento de que isso é "perturbador".
Entretanto, chega-nos de Espanha outro tipo de notícias perturbantes. Em Lérida, um imã radical criou uma milícia privada que anda pelas ruas a perseguir os muçulmanos que têm comportamentos não ortodoxos (na forma de vestir, por exemplo), perante a indiferença das autoridades. Enquanto isso, na província de Cádiz, um jovem muçulmano fez queixa na polícia do seu professor de Geografia por este ter falado, nas aulas, das condições em que fabricava presunto (o Ministério Público espanhol teve, neste caso, o bom senso de arquivar a queixa).
O contraste entre estas situações faz-nos regressar à ideia de que tendemos a olhar para a violência anticristã com critérios mais condescendentes ou mesmo com um espírito compreensivo. É como se entendêssemos que todos os cristãos devem carregar um novo "fardo do homem branco", sendo obrigados a penar, pelos cinco continentes, os pecados da colonização e, por isso, sendo sempre culpados de todos os males, mesmo quando estão inocentes...
Jornalista, www.twitter.com/jmf1957