O nosso Menino Jesus
O Pai Natal não teve lugar à nossa mesa
Encontro
Numa antecipação marcada pela vivência natalícia de décadas, felizmente sempre no seio da família, é saboroso perspectivar o NATAL de 2010 com muito de bom que há-de ficar na história pessoal de cada um. O tempo de crise, a vários níveis, acicatou cada um a descobrir formas e estilos de vida mais solidários.
O encontro adivinhado na casa-mãe, com todos os membros da família a partilharem as alegrias próprias da quadra, onde os desejos de uma felicidade abençoada pelo Menino-Deus se pressente nos olhares de todos, é sinal de que tudo se conjuga para se reforçar o laço da ternura que almejamos.
Por momentos, deixámos à porta da noite santa as políticas e as dificuldades próprias, para acolhermos com carinho o que de bom vivemos, quantas vezes experimentando novas emoções, na alegria vivida pelos mais novos ao atingirem metas marcantes no ano prestes a fechar o portão da entrada. Entraram ainda, no alvoroço da hora que se aproxima, as memórias dos que têm lugar cativo nos nossos corações.
Aperitivos
Na hora dos aperitivos lá estão, efusivos, os cumprimentos afectuosos, como se não nos víssemos há muito tempo. Uma ou outra queixita, mais dos menos jovens, gestos carinhosos dos mais sensíveis, palavras amigas de circunstância, uma ou outra recordação de tempos idos, um olhar ternurento para o Presépio que vem dos avós. Ao lado, para as bandas da cozinha, atarefados, lá estão quem assumiu os preparativos finais por que todos esperam. Mesa posta, pratos e talheres de festa, tudo enfeitado como manda a tradição, o Menino-Jesus contempla, enternecido, no seu silêncio que tanto nos diz, a harmonia familiar. Estou em crer que chega mesmo a cirandar à nossa volta, apanhando-nos distraídos, ouvindo sorridente o que cada um diz… e pensa. Tudo se conjuga para que o NATAL de 2010 seja o reflexo do espírito que a Igreja nos tem ensinado a viver, não apenas nesta quadra, mas durante toda a vida.
Prato Principal
À volta da mesa, sobre toalha própria, escolhida por quem sabe para esta noite, tudo se compõe. E é curioso observar como há tanto que dizer, que contar, que perguntar. Instintivamente, cada um senta-se no seu lugar. De vez em quando lá vem uma troca, estrategicamente compreendida. Mas tudo fica acomodado para a ceia de consoada. Com lugares vazios, é certo, dos que se passaram para o lado do coração. E o bacalhau com todos, sempre óptimo como manda a lei, é ano a ano motivo de comentários, pela qualidade da cura, pela altura da posta, pela têmpera adequada. Ou não houvesse na família quem perceba mesmo do assunto. Familiares houve que desde meninos pescaram bacalhau, enfrentando os mares gelados que nos dão o melhor “fiel amigo” do mundo. E foram evocados com admiração, sobretudo pelos que, ainda envolvidos em estudos, nunca imaginaram as agruras vividas por crianças-adultas na pesca do bacalhau.
E vêm à baila, então, outros Natais, e recordam-se feitos e histórias passados, e fala-se das crises que geram fomes e desesperos, e sublinha-se a generosidade de tantos, e acentua-se a urgência de dia após dia estarmos ao lado dos Bancos Alimentares. E um ou outro não deixará de frisar que, em hora de mesa farta, há multidões que estão sem mesa nenhuma. Ao frio da noite, tão pobres como o Menino-Deus, que nasceu há mais de dois mil anos, apenas para nos ensinar humildade e para nos deixar um mandamento novo.
Não há espaço para se ouvir o tilintar dos pratos, o apetite maior é o de falar, de partilhar ideias e recordações, de avançar com projectos, de alimentar sonhos. A hora é melhor para isso, que para outra coisa.
Sobremesa
Na hora da sobremesa, bilharacos, filhós, aletria e arroz-doce, nozes e figos, pão-de-ló e bolo-rei. Um diz: O bolo-rei, sem fruta cristalizada, é o melhor doce para os diabéticos. Está a chamar a brasa à sua sardinha. Mas talvez prove um pouco de tudo, para não ficar triste. E chama para a mesa as iguarias de outras épocas, ora caídas em desuso, que as modernices, mesmo na culinária, estão em moda. Neste período da festa não falta quem traga à colação hábitos natalícios de outras terras e outras gentes. Mesmo dentro do nosso país. Não é a nossa região terra de múltiplas gentes, vindos um pouco de toda a parte?
Um ou outro lembra o fracasso de um bolo que não resultou como esperado e que traiu o seu criador. Mas de imediato se adianta que outros ultrapassaram a medida do que era normal. E até nem faltou quem sugerisse a partilha com quem mais precisa, como penitência assumida de que não podemos olhar só para o nosso umbigo em época de fomes e de desempregados. Os sem-abrigo crescem como cogumelos numa sociedade sem alma. As televisões, sobretudo nesta quadra, lá os vão mostrando para nos envergonhar, frisou um mais maduro.
As prendas
Depois vêm as prendas, aguardadas pelos mais novos. Ou por todos. As dificuldades são múltiplas, mas as tradições são mais fortes. Mais modestas as lembranças? Que importa? São apreciadas na mesma e até não faltará quem dê mais valor a pequenas coisas, olhando pouco para o que custou mais dinheiro. O essencial está no dar com o coração, com o afecto.
Então, a chefe de família atira-nos com esta: bem comidos, apreciadas as prendas, vamos agradecer ao Menino-Deus, que tudo isto proporcionou. E uma oração, singela como a alma de quem a iniciou, uniu toda a família. E o beijar do Menino aconteceu com carinho. E ainda foram evocados os que, recostados nos nossos corações, também viveram connosco este Natal. Depois, os mais corajosos, saíram para a Missa do Galo, onde a comunidade paroquial se faz mais família fraterna. E o Pai Natal, rei do comércio e de indústrias, desta vez, não teve lugar à nossa mesa.
Fernando Martins