José Tolentino Mendonça
Vi há uns anos na Casa Goethe, em Frankfurt, uma imagem que me tem acompanhado. É uma aguarela de J.H.W. Tischbein que representa Goethe na sua residência romana, situada na conhecida Via del Corso. Vemo-lo de costas, a partir do interior da casa, trajado com a informalidade das horas domésticas. E está à janela. Na verdade, esgueira o corpo e a curiosidade por meia janela apenas. Mas mesmo meia janela, por vezes, é como se fosse o mundo todo. Gosto daquela mistura de descontração e atenção que atravessa a sua figura, daquele estar debruçado (dir-se-ia mergulhado) para uma coisa que só ele vê. Gosto da luz azulada ou branca desse exterior, talvez a luz de uma manhã já alta.
Teixeira de Pascoaes escreveu: «Ai, se não fosse a névoa da manhã/ E a velhinha janela onde me vou/ Debruçar para ouvir a voz das cousas,/ Eu não era o que sou». Eu sei que isso é verdade. Quando fecho os olhos e penso nas janelas que frequentei (nas janelas da infância e da adolescência, donde o visível se avista com um intacto esplendor; nas janelas da vida adulta; nas janelas de lugares próximos ou distantes; nas janelas de passagem; nas janelas fechadas contra a noite ou para ela abertas, numa espécie de silêncio ou súplica…), reconheço a certeza do verso de Pascoaes: «eu não era o que sou».
As janelas exteriores são símbolo da abertura interior. Uma janela é uma sugestão. Em si mesma pode até não significar nada de especial. Especial é o que ela desencadeia, trazendo-nos e levando-nos para lá dos nossos pontos de vista, deslocando os nossos patamares, alargando o nosso campo de visão. Fernando Pessoa explica isso muito bem:
«Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave…».
Sempre entendi este «não ter filosofia nenhuma» como um apelo a não sobrepormos os nossos pré-conceitos e os nossos pré-juízos à contemplação da realidade em si. Há uma disponibilidade autêntica que precisamos de adquirir para olhar o mundo e nos olharmos, inclusive, a nós próprios. Para isso «Não basta abrir a janela»: é necessário abrir o coração.
No diário de Paul Claudel há esta frase interessante: «A vida espiritual não é uma questão de portas, mas de janelas». De facto, a grande recomendação que, por exemplo, os monges fazem é a do permanecer na sua cela (isto é, no seu território interior). Como qualquer planta, também nós resistimos mal a contínuas transplantações. Precisamos de raiz, de âncora, de terra estável que sustente a nossa maturação… Acho que isso é a porta. A janela é outra coisa: é a quotidiana necessidade de abrir a vida, nem que seja por um segundo, e deixar entrar o imprevisível de Deus.
In DNotícias.pt