António Marujo, jornalista do PÚBLICO, especialista em questões religiosas, publica hoje, naquele diário, um comentário oportuno sobre a questão do preservativo, tema muito badalado na comunicação social. Vale a pena ler:
Preservativo: o que ainda falta depois das palavras do Papa
Podemos desde já anotar algumas observações a propósito do novo livro do Papa e das suas declarações acerca do preservativo.
1. Obviamente, Bento XVI quis dizer o que diz no livro: mantendo a oposição oficial ao uso do preservativo, admitiu a sua utilização "em certos casos". Soam, por isso, a afirmações de mau perdedor as daqueles que vêm agora relativizar o que disse o Papa, afirmando que se trata apenas de repetir a doutrina.
Sim, Bento XVI não disse nada de novo em relação ao que muitos dizem na Igreja. Mas sim: o que ele disse é novo na boca de um Papa e isso dá-lhe uma grande carga simbólica que não pode ser ignorada. Habituados que estávamos aos pronunciamentos de João Paulo II e do próprio Bento XVI sobre a matéria, esta declaração muda a forma como a doutrina oficial católica é apresentada.
2. Isto dito, continuam a ser certeiras as palavras do teólogo espanhol Juan Masiá, que dirigiu cátedras de bioética católica em Madrid e no Japão: "No caso - meio cómico, meio anacrónico - à volta do preservativo: não se sabe se havemos de rir ou chorar. Nem sequer tinha que ser problema. Não só como prevenção de contágio, mas como anticonceptivo corrente (...). A teologia moral há muito superou esse falso problema."
A história, de facto, podia ser outra e o preservativo já deveria ter deixado de ser um problema para a doutrina oficial católica há 40 anos - o Papa Paulo VI nomeou uma comissão para redigir aquela que viria a ser a encíclica Humanae Vitae, sobre o planeamento familiar. As posições da maioria da comissão, aberta ao planeamento familiar "artificial", não agradaram a alguns cardeais da Cúria Romana, que não deixaram Paulo VI em paz enquanto este não refez a comissão, de modo a manter a doutrina tradicional.
A tragédia destas quatro décadas, com tanta gente que abandonou a Igreja por causa das muitas decepções, nomeadamente no campo da moral, evidencia a forma como aquela foi uma oportunidade perdida.
Por isso, os crentes podem continuar a pressionar para que a doutrina oficial mude nesta matéria, acompanhando o que a teologia moral já fez: o problema não está nos métodos de planeamento familiar, mas sim na atitude radical das pessoas em favor da vida - também da vida no seu decurso e perante os problemas graves que as pessoas enfrentam.
3. Não será nunca uma afirmação como esta que o Papa fez que irá mudar a trágica realidade da sida. Todos sabemos que os católicos gerem a sua consciência nestas matérias indo muitas vezes contra o que diz o discurso oficial.
Mais ainda em África, onde o catolicismo tem pouca influência, mas onde a Igreja Católica e outras confissões religiosas têm um trabalho que o mundo mediático teima em ignorar: 800 projectos (dos cerca de 1200 no total) ligados apenas a congregações religiosas católicas, que apoiam 4,5 milhões de doentes e envolvem 3000 padres e freiras - sem contar, portanto, com projectos de outras instituições católicas.
4. Não se pode ignorar tão pouco a verdadeira ocultação mediática no que à religião, ao catolicismo e ao actual Papa em particular se verifica. Pode o Papa dizer que "libertar" a humanidade da fome é uma das tarefas "mais urgentes" no mundo (fê-lo há um mês, em mensagem à FAO); pode ele gritar pela reforma necessária do sistema financeiro (na última encíclica, Caritas in Veritate, e em várias outras ocasiões, a última das quais há dez dias).
Pode ainda dizer, como fez João Paulo II, a propósito da invasão do Iraque, que a guerra "é uma derrota da humanidade". Pode até pedir o fim do arsenal de armamento nuclear e do comércio de armas ou uma urgente reforma agrária - já o fizeram João XXIII; Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI.
Nenhum destes temas provocará a mesma excitação que o preservativo (ou a enésima condenação do aborto), num império mediático fundamentalmente acrítico em relação aos verdadeiros e obscuros poderes: esses que radicam no sistema financeiro e nos grandes grupos económicos, que os governos deixaram de querer controlar.
António Marujo