UMA TRAPALHADA QUE NÃO CONSTITUIU UMA SURPRESA
António Marcelino
Chegamos onde há de muito se esperava. Dolorosamente. Sem horizontes de esperança e sem nesga de luz, com o povo dorido e dividido. Com nuvens negras que pressagiam fome, revolta, violência. A fome não é boa conselheira. A violência já anda por aí à solta. Culpa de poucos, o sofrimento de muitos.
As premissas estavam postas. A conclusão de há muito não oferecia dúvidas. O forte do povo português está mais no coração onde cabe a revolta pelas desilusões, mas cabe também a perda fácil da memória, quando se ouvem de novo os discursos inflamados e fogosos dos trapaceiros de ontem. Não falta quem fale de fatalismo. Não vou por aí e não vou sozinho.
Na selva da política, quem fala a verdade não tem nem lugar, nem sucesso. Soltam-se logo os superficiais instalados, os interessados em perigo, os servidores oficiais do sistema. Conluiem-se todos, os de casa e os de fora, e logo se lhes abrem espaços onde podem pontificar, sem que ninguém lhes peça contas da manifesta intenção de denegrir e destruir, com mentiras e suspeitas. Um país doente que se diz democrático.
Com orçamento ou sem orçamento, os passos dados ao longo de anos foram muitas vezes errados, para se salvarem ilusões momentâneas, se conseguirem vitórias imerecidas, se confirmarem ambições megalómanas. Mas o problema grave é que o povo foi enganado e esquecido. Agora, mais se queixa do que espera, mais critica do que arregaça mangas. Como se poderá ele levantar do marasmo de morte se os valores morais e éticos foram desprezados, a família destruída, as pessoas desrespeitadas, a economia estrangulada, o fosso entre ricos e pobres, aprofundado, a educação desvirtuada e amorfa, a saúde cada dia mais difícil, a justiça desprestigiada, o dia-a-dia dos mais carenciados insuportável, a verdade esvaziada e sem lugar num domínio onde reina o despudor e a mentira?
O orgulho político é sempre mortífero. Endeusa os que o cultivam, não dá lugar ao diálogo, responde com desprezo agressivo às razões do outro, fecha os ouvidos aos gritos de angústia, toma por tolos os avisos ponderados. O orgulho só é capaz de gerar obras e decisões fictícias, que o tempo não respeita, nem pode respeitar. Vimos vendo isto tudo.
Quem vai agora julgar e ditar sentença aos causadores deste caos moral, político, social, económico, relacional? A democracia teria saídas se fosse democracia a sério. Mas a democracia, mesmo com as suas conhecidas fragilidades, não interessa a muitas pessoas de grupos, incapazes de jogarem com regras no campo em que todos são chamados a jogar com iguais direitos e deveres.
Vamos entrar, ou melhor, já estamos dentro do tempo em que a esperança murcha a olhos vistos e dificilmente ganha raízes e espevita. Apesar de tudo, é preciso não a deixar morrer. O país não é um feudo de palhaços e malabaristas. Há gente normal capaz de dar rumo ao barco, mesmo com o mar borrascoso, se sentir que, à sua volta, renasce a verdade. A utopia não deixa morrer, porque só ela é capaz de realismo sadio. Sem ela, já tudo é morte.