Mineiro resgatado
Um clamor já escutado e outros que esperam vez
António Marcelino
«O clamor de trinta e três homens resistentes, gritando sempre pela vida, quando envolvidos pela terrível perspectiva de um maior poder da morte; a decisão comum de não desistir, dentro e fora da mina; a conjugação maravilhosa da capacidade humana, das possibilidades técnicas e do saber científico adquirido; a disponibilidade de quem podia ao serviço de quem mais precisava; o gesto de solidariedade que abanou a sociedade das várias línguas e cores e a todos fez bem, tudo isto mostrou que há clamores que quando escutados deixam o mundo mais humano, e mais confiante nas suas capacidades de sempre “fazer o bem sem olhar a quem”.»
Todos vibramos, com alegria e emoção, pelo êxito dos muitos esforços que se conjugaram na acção de salvamento dos mineiros chilenos. Um êxito que foi além das expectativas de muitos que, directamente, se envolveram na operação. Não faltou quem duvidasse, quem dissesse que era causa perdida, quem falasse de esperança, mais para consolar as famílias, que pela certeza de que o desejo se poderia transformar em realidade. Os apoios de todo o lado multiplicaram-se, os esforços foram tendo resultados positivos, a tenaz paciência comandou o processo, as etapas previstas empurraram-se umas às outras. Parece que o mundo parou. Os homens foram saindo e o chefe quis ser o último, como era seu dever.
O clamor de trinta e três homens resistentes, gritando sempre pela vida, quando envolvidos pela terrível perspectiva de um maior poder da morte; a decisão comum de não desistir, dentro e fora da mina; a conjugação maravilhosa da capacidade humana, das possibilidades técnicas e do saber científico adquirido; a disponibilidade de quem podia ao serviço de quem mais precisava; o gesto de solidariedade que abanou a sociedade das várias línguas e cores e a todos fez bem, tudo isto mostrou que há clamores que quando escutados deixam o mundo mais humano, e mais confiante nas suas capacidades de sempre “fazer o bem sem olhar a quem”.
Logo pela manhã, ao ouvir a notícia de que o primeiro mineiro já estava salvo, e que logo outros iam chegando por igual caminho, na esperança de que em 48 horas estariam todos fora da mina, dei por mim a dar graças a Deus por ter dado ao homem tanta força de esperança, tanta capacidade de bem e tanta possibilidade de o fazer, sempre que o “outro” que é, também, um irmão, clama sem cessar e, impotente, estende a sua mão, à procura de outra mão amiga que o possa salvar.
Tudo isto constitui um sinal que é preciso interpretar. Há muitos clamores de vida, ainda sem resposta, mal escutados ou sacudidos pelo incómodo que geram. O Milénio em que vivemos e há pouco iniciado, por decisão de instâncias internacionais, leva consigo o compromisso de se empenhar de modo efectivo, em oito objectivos de resposta adequada a problemas humanos graves. Logo à cabeça vem “erradicar a pobreza extrema e a fome”. É esta, por certo, a situação mais escandalosa, a que mais envergonha a humanidade, a que põe mais a descoberto a inversão de valores, e mostra que, mesmo após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ainda há pessoas pouco valem e, em muitos casos, não valem nada.
Os jornais enchem-se de notícias e de artigos, fazem-se congressos com oradores ilustres e de fama, tomam-se iniciativas que não passam de uma gota de água. Antes morria de fome uma criança de seis em seis minutos, agora de sete em sete. Neste nosso planeta são 925 milhões as pessoas que passam fome. Com 1% do que se recolhe para salvar o sistema financeiro podia erradicar-se a fome no mundo. Os países ricos fazem declarações maravilhosas, mas não entregam dinheiro. Os regimes políticos gabam-se de acabar com as barracas de miséria, mas apenas as retiram do olhar de quem passa e as afastam para zonas sem passagem. Mas miséria, que é pobreza humana e social agravada, não precisa só de pão, mas também de soluções que garantam o pão de cada dia e, para todos, uma vida digna de pessoas. Vimos assistindo em diversos países da Europa, e também em Portugal, a corrupções bancárias. Os governos esforçam-se por encontrar dinheiro que as possa sanar. Quem dera que se visse igual afinco para resolver os problemas dos pobres.
Há clamores não escutados. Quando todos quisermos e formos estimulados por quem queira de verdade e pode tomar decisões, não há problemas sem solução. A pobreza, que redunda, inexoravelmente, em miséria, é hoje o maior dos problemas sociais que cada dia se agrava. Ela tem rosto e tem história. Constitui a vergonha de todos nós que nos vamos deixando afogar pelo consumismo e nos perdemos em retóricas estéreis. Até quando? Será que esperamos que nos bata à nossa porta e nos abocanhe? Já faltou mais.