domingo, 5 de setembro de 2010

No Público de hoje: crónica de Bento Domingues




Em memória de Frei João Domingos

Por Frei Bento Domingues




A sua vida passou por várias conversões. A morte levou-o quando já tinha dado tudo a Deus e ao povo angolano



Este nome é, hoje, praticamente ignorado em Portugal, tratando-se, no entanto, de uma figura incontornável da boa presença portuguesa em Angola onde, desde 1982, viveu e realizou uma obra notável. Angola, em plena guerra civil, foi para ele uma opção definitiva.
Nasceu, em 1933, na aldeia da Torre (Sabugal) e morreu, em Lisboa, a 9 de Agosto de 2010, onde se encontrava para ser operado. Entrou para a Ordem dos Pregadores em 1952. Estudou Filosofia no Centro de Estudos Sedes Sapientiae, em Fátima, Teologia em Otava e Estrasburgo.
Foi director da Escola Apostólica em Aldeia Nova. Como prior do Convento Dominicano, participou activamente na criação do Centro de Estudos de Fátima (CEF), cuja sede e salas de aula estavam situadas nesse mesmo convento. Em 1975, a partir da Comunidade João XXIII (Lisboa), desenvolveu um incansável trabalho de orientação de numerosas congregações religiosas, nomeadamente, no apoio ao movimento das "pequenas comunidades" que irrompeu em Portugal, por diversas circunstâncias, depois do 25 de Abril de 1974.


Em 1981, deslocou-se a Angola para estudar as condições de uma futura e inédita presença dominicana masculina naquele país dilacerado pela guerra. Com Frei José Nunes e Frei Gil Filipe foi, em 1982, para Waku-Kungo (Diocese de Novo Redondo, ou Sumbe). Este grupo foi fervorosamente acolhido pelo seu bispo de então, D. Zacarias Kamuenho, mais tarde arcebispo de Lubango, a quem foi atribuído o Prémio Sakharov. Acompanhou sempre com admiração e carinho os percursos e realizações dos dominicanos. Este bispo teve a intuição de organizar a vida da diocese em termos de pequenas comunidades, inspirando-se no modelo da organização tradicional das populações designado por Ondjango. A pequena comunidade dominicana recém-chegada assumiu com entusiasmo essa perspectiva de evangelização inculturada sobre a qual um dos seus membros fez, passados anos, uma brilhante tese de doutoramento, analisando a fecundidade e os limites daquela opção (1).
Waku-Kungo era uma frente de guerra entre o MPLA e a UNITA. Nessa instabilidade, as características dessa paróquia-missão exigiam não só uma inserção cultural, mas também uma luta permanente pelo respeito dos direitos humanos, independentemente do ocupante militar. A formação dos cristãos e, sobretudo, dos animadores das comunidades, na promoção da justiça, na partilha dos bens e na reconciliação entre angolanos, tornou-se a grande prioridade.
Esse êxito evangelizador fez com que os dominicanos fossem convocados para uma presença mais alargada em Angola. Coube a Frei João Domingos, em 1987, fundar a comunidade de S. Tomás de Aquino, na Paróquia de N.ª S.ª do Carmo, em Luanda, que se transformou num foco de novas iniciativas.
Para além da missão de pároco, foi-lhe confiada a direcção do Instituto de Ciências Religiosas de Angola (ICRA). Reconhecendo em Frei João Domingos a "graça da pregação" - sem ela, a eloquência não passa de propaganda -, os bispos de Angola não lhe pediram, apenas, que pregasse aos outros e fosse professor de Teologia no Seminário Maior de Luanda, mas também, por várias vezes, quiseram que fosse ele o seu pregador.
Criou, no ICRA, um segundo curso, o de Educadores Sociais. Lançou, depois, o Instituto Superior João Paulo II, com um curso universitário de Serviço Social. Colaborou na criação do Centro Cultural Mosaiko, empreendimento dos dominicanos de Angola - na diversidade dos seus povos e culturas - que se tem distinguido por um trabalho de formação e organização, em todo o país, de grupos para a defesa dos direitos humanos.
Na sua intervenção multifacetada estavam sempre unidas a dimensão espiritual e a reflexão sobre a complexidade da realidade angolana, nas suas diferentes fases dos últimos 30 anos. Por isso mesmo, a sua voz tornou-se cada vez mais escutada e respeitada, não apenas nos meios eclesiais, mas também a nível da sociedade civil. Com a celebração eucarística televisiva - a que Frei João Domingos presidia nos primeiros domingos de cada mês -, as suas intervenções acutilantes eram comentadas em toda a Angola.
Nunca se deixou seduzir pela habitual "caça às vocações" para assegurar um futuro angolano ao carisma dominicano. Perante a fragilidade de todos os desígnios humanos, só o exemplo e um critério de exigência poderiam mostrar se valia a pena ou não ir pelo caminho aberto por ele e pelos seus companheiros. Procurou que os candidatos estudassem noutros países africanos, sabendo que é a partir de África que devem elaborar o projecto da Ordem dos Pregadores nesse continente. Varreu, desde o começo, qualquer ideia de colonialismo religioso e eclesiástico, não por táctica, mas para respeitar a verdade da evangelização inculturada que só os africanos poderão assegurar se não caírem na tentação do poder económico, político e religioso. No entanto, quando morre, as três comunidades dominicanas são já constituídas, quase exclusivamente, por africanos.
Os seres humanos não nascem feitos. A vida de Frei João Domingos passou por várias fases, por várias conversões. A morte levou-o quando já tinha dado tudo a Deus e ao povo angolano.

(1) J. Nunes, Pequenas Comunidades Cristãs - O Ondjango e a inculturação da fé em África / Angola, UCP. Porto, 1991.

In PÚBLICO

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