Capital para investir e render, os dons naturais
António Marcelino
Já em tempo de férias, algumas revistas generalistas trataram, como tema de interesse, o facto de haver, em Portugal, empresários empreendedores e de sucesso, que não eram nem doutores, nem engenheiros. Pudemos ver, assim, a carreira de êxito de muita gente, uma mais conhecida que outra, mas toda ela a denunciar a riqueza de dons naturais, que se acolheram e se souberam reconhecer, valorizar e investir, mesmo quando as situações sociais e familiares dos seus inícios eram adversas e difíceis de contornar.
Gente que veio de meios pobres, onde o pão do dia a dia era amassado com o suor e dor. Gente que soube aguentar dificuldades e nunca desistiu de ir mais longe. Gente para a qual o trabalho e a persistência no sonho foram a riqueza que antecipou outras riquezas. Gente humilde que, como tal, soube viver, mesmo quando o fruto do trabalho lhe abriu horizontes novos. Gente que pode confessar agora, com simplicidade e verdade, que, nas suas empresas, com centenas de colaboradores, nunca aí se despediu um trabalhador, mesmo em momentos de crise. Quem cresceu a contar os tostões e a fixar o olhar pensativo nos filhos que iam crescendo e no modo de prevenir o seu futuro, sabe bem a fragilidade de um lar quando não tem hoje a garantia do pão de amanhã.
Nestes tempos, a escola está mais à mão de todos os que dela quiserem aproveitar. Há mais de cinquenta anos, e mesmo ainda há menos, não era assim. Não fossem os seminários, escolas acessíveis a famílias pobres e numerosas, milhares que triunfaram na vida teriam ficado sem possibilidade de ir além da escola primária, quando esta existia ou ainda podia ministrar as quatro classes. Não fossem muitos pais que tiraram o pão da boca para dar aos filhos, gente que se sujeitou a tudo para que estes fossem mais longe, e Portugal seria muito mais pobre. A gente idosa rural agradecida pelo Estado lhe dar uma pequena pensão, uma vez que nada tinha contribuído, fui abrindo os olhos e dizendo do seu grande investimento em transmitir aos seus filhos valores com o amor ao trabalho, a honestidade, o respeito pelos outros, a coragem ante as dificuldades, enriquecendo assim o património do país. Então foi percebendo que não era favor político, mas dever público de gratidão.
A história de muitos de nós, mais idosos, como a de muitos que vêm de tempos difíceis, mas onde o trabalho era honra, a palavra dada uma escritura, o amor uma realidade com consequências, ilustra esta realidade que muita gente nova não consegue entender, porque foi crescendo sem que lhe ensinassem a ler o livro da vida, o mais eloquente e importante dos livros.
Gente que triunfou, que veio do nada, criou empresas, deu trabalho e gerou riqueza, sem que soubesse o caminho do liceu ou da universidade, e nem sequer onde esta ficava, foi gente que leu este livro, ensinada pelos pais ou rompendo ela mesma sempre que viu fresta de onde vinha luz ou porta entreaberta a permitir entrada. Gente que deixa, normalmente, filhos que aprenderam na mesma escola e são garantia de continuidade. De netos que receberam tudo de mão beijada, diz o povo que já não há igual segurança.
Merece a homenagem agradecida de todos a gente grande deste país, que nunca desistiu de ir mais longe, quando ainda era pequena. As lições eloquentes da história, porque são lições de vida, não podem ser esquecidas, mesmo quando depreciadas ou apagadas pelos novos ricos incultos, que sempre andaram ao colo de outros ou subiram e se instalaram na vida, sem esforço próprio.