Libertação e política
Volto ao teólogo flamengo Edward Schillebeeckx, um dos mais notáveis e influentes pensadores católicos do século XX, que morreu, com 95 anos, no passado dia 23 de Dezembro, em Nimega (Holanda), em cuja universidade ensinou. Foi um dos principais mentores do Concílio Vaticano II, acontecimento determinante do século XX. De facto, aos seus críticos é preciso perguntar: o que seria a Igreja sem esse Concílio?, sem ele, como seria o próprio mundo?
E. Schillebeeckx fez parte de uma plêiade excepcional de teólogos - entre eles, M. D. Chenu, H. Urs von Balthasar, Yves Congar, Henri de Lubac, Karl Rahner, J. B. Metz, Hans Küng -, que ousaram pensar e que deram uma nova orientação ao cristianismo e à Igreja. Um dos problemas maiores da Igreja actual é que precisamente essa geração está a desaparecer e não tem substitutos à altura.
Acusado de pôr em perigo a ortodoxia, teve de enfrentar por três vezes a Congregação para a Doutrina da Fé - uma das vezes, porque defendeu que a comunidade poderia designar membros seus não ordenados para presidir à Eucaristia -, e denunciar os seus métodos inquisitoriais, constatando que a Igreja se ia desviando do Concílio e se tornava cada vez mais monolítica, confundindo unidade com uniformidade.
Foi-lhe atribuído o Prémio Erasmus, pois "os seus trabalhos vêm confirmar os valores clássicos da cultura europeia ao mesmo tempo que contribuem para o exame crítico desta cultura". Nunca perdeu a esperança na Igreja, comunidade de Deus, crítica e solidariamente presente e activa entre os homens e as mulheres deste mundo, entre os crentes, "que voltam as costas precisamente à Igreja estranha ao mundo, à Igreja do Concílio de Trento e dos tempos anteriores ao Concílio Vaticano II, Igreja triunfalista, juridicista e clerical, que pretende ser o intérprete irrefutável da vontade de Deus até ao mínimo pormenor". Numa das últimas entrevistas, concluiu: "Continuo optimista. Acredito em Deus e em Jesus Cristo. Que mais me pode faltar?"
O conceito de "experiências negativas de contraste" é certamente uma das chaves para o seu pensamento, pois formam uma experiência fundamental. É de facto nessas experiências que o homem aprende a distinção entre bem e mal e a urgência ética. O que vemos e ouvimos do mundo põe-nos em contacto com uma realidade que não está de modo nenhum em ordem - há algo que está radicalmente mal. Por isso, a experiência de sofrimento, de maldade, de injustiça e infelicidade é "fundamento e fonte" de uma indignação e de um "não" fundamental ao mundo tal como se apresenta. Ora, esta incapacidade de se resignar com o mundo tal como está revela uma "abertura" para uma outra situação, que constitui "apelo radical ao nosso sim", sim a um mundo outro, com sentido, justiça, felicidade. Este sim aberto, que é ainda mais forte do que o não, pois é ele que torna possível a resistência e indignação frente ao mal, é, num mundo ambíguo - mistura de bem e de mal, de sentido e sem sentido -, alimentado e solidificado por experiências fragmentárias, mas reais, de sentido e felicidade, convocando à solidariedade de todos para a construção de um mundo melhor, com rosto humano.
Aqueles que acreditam em Deus "preenchem religiosamente esta experiência fundamental", recebendo então o "sim aberto" mais orientação e horizonte, dados no vínculo entre ética e mística. Os cristãos, concretamente, a partir da revelação de Deus no homem Jesus, confessado como o Cristo e Filho de Deus, são transformados pela esperança fundada de que "no núcleo mais íntimo da realidade, está presente um suspiro da compaixão, da misericórdia; os crentes vêem aí o nome de Deus", cuja causa é a causa dos homens, o seu bem-estar e felicidade.
A fé num "Deus dos homens" que quer chamar todos à plenitude da vida implica, por um lado, que é preciso acreditar no homem, pois não há salvação que não passe pela libertação, também sócio-política, mas, por outro, não se pode cair numa fé iluminista ingénua no progresso nem num messianismo político, pois "nenhum progresso sócio-político reconciliará alguma vez com a injustiça que coube aos mortos".
Anselmo Borges
In DN