"O desenvolvimento humano integral
na caridade e na verdade"
Não terá sido mera coincidência a terceira encíclica de Bento XVI sobre "o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade" no contexto da presente crise económica mundial, Caritas in Veritate (A caridade na verdade), ter sido publicada pelo Vaticano na véspera da cimeira do G8 e dois dias antes do encontro de Obama com o Papa. O ministro dos Negócios Estrangeiros italiano, Franco Frattini, veio sublinhar o facto na RAI, televisão pública do país, declarando que a encíclica papal "guiou"os trabalhos do G8.
A chamada "Doutrina Social da Igreja" é constituída fundamentalmente por uma série de encíclicas de Papas, a primeira das quais foi a Rerum Novarum, de Leão XIII, seguindo-se a Quadragesimo Anno, de Pio XI, a Pacem in Terris, de João XXIII, a Populorum Progressio, de Paulo VI, a Laborem Exercens, a Sollicitudo Rei Socialis e a Centesimus Annus, de João Paulo II. A mais de 40 anos da publicação da Populorum Progressio, Bento XVI quer, com esta nova encíclica, homenagear o seu autor, Paulo VI, retomando os seus ensinamentos, mas actualizando-os, para que iluminem o caminho da Humanidade em vias de unificação.
Caritas in Veritate foi recebida com indiscutível interesse. O debate público à sua volta revela a grande autoridade do Papa não só no mundo católico, mas também entre políticos e organismos internacionais. Vários media mundiais de referência consagraram-lhe o editorial, sublinhando a sua importância e até a sua inesperada orientação à esquerda.
Defende o mercado e a liberdade individual, mas denuncia o capitalismo selvagem; apela para os valores éticos que devem guiar a economia e a política - "para o seu correcto funcionamento, a economia tem necessidade da ética, e uma ética amiga da pessoa"; pronuncia-se pela necessidade de o Estado recuperar um papel activo, destinado inclusive a crescer, sobretudo por causa da regulação do mercado; declara a urgência da reforma das Nações Unidas e da arquitectura financeira global, acentuando a necessidade de uma "Autoridade política mundial" reconhecida por todos, que, actuando segundo os princípios da solidariedade e da subsidiariedade, goze de poder efectivo.
O que conta é o Homem, e o desenvolvimento só é verdadeiro, se for integral, isto é, do Homem todo e de todos os homens. Reclama, pois, uma globalização que tenha em conta a dignidade pessoal de todos. Assim, "a crise obriga-nos a rever o nosso caminho, a dar-nos novas regras e a encontrar novas formas de compromisso, a apoiar-nos nas experiências positivas e a rejeitar as negativas". "Devemos ser protagonistas e não vítimas da globalização".
Neste domínio, "a Igreja não tem soluções técnicas para oferecer" e também não pretende "de modo nenhum meter- -se na política dos Estados". Mas, estando ao serviço de Deus, tem uma missão a cumprir a favor de uma sociedade à medida do Homem e da sua dignidade. "A fidelidade ao Homem exige a fidelidade à verdade, que é a única garantia de liberdade e de possibilidade de um desenvolvimento humano integral".
Precisamente "caridade" e "verdade" não são apenas as palavras que dão o nome à encíclica. São o seu fundamento. Porque Deus "é ao mesmo tempo Agapé e Lógos: Caridade e Verdade, Amor e Razão". Assim, o amor é o caminho real da doutrina social da Igreja. Mas a verdade é luz que dá sentido e valor ao amor. Sem verdade, o amor cai em sentimentalismos. "Sem verdade, sem confiança e amor pelo verdadeiro, não há consciência e responsabilidade social, e a actuação social fica à mercê de interesses privados e lógicas de poder".
A caridade na verdade é "o princípio sobre o qual gira a doutrina social da Igreja", que actua nos dois critérios fundamentais orientadores da acção moral: a justiça e o bem comum. Quem ama é justo e até supera a justiça, com relações de gratuidade. O bem comum é exigência da justiça e do amor. "Trabalhar pelo bem comum é cuidar e utilizar o conjunto de instituições que estruturam jurídica, civil, política e culturalmente a vida social, que se configura assim como pólis, como cidade", cada vez mais cosmopólis.
Anselmo Borges
In DN