Há algo essencial que aqueles que quereriam imortalizar-se, mediante a clonagem, esquecem: mesmo os clones, quando dissessem "eu", di-lo-iam de modo único e intransferível. Não é isso, aliás, o que acontece com o gémeos verdadeiros? De facto, cada um de nós é sempre o resultado de uma herança genética e de uma história única, história com cultura.
Nenhum de nós é sem o outro, sem outros. Sem tu, não há eu. Fazemo-nos uns aos outros em interacção. Só com outros seres humanos nos tornamos humanos. A nossa identidade é constitutivamente atravessada e mediada pela alteridade, concretizada em outros.
Ora, não havendo outros sem a interpenetração de biologia e cultura, é inevitável o diálogo intercultural. O encontro com o outro acontece sempre no quadro da cultura, porque não há outro "puro", sem cultura. Assim, na presente situação do mundo, em contexto de multiculturalismo, não basta a mera junção de culturas, vivendo umas ao lado das outras e respeitando-se mutuamente. É preciso passar do multiculturalismo da justaposição ao pluralismo cultural interactivo, deixando-se desafiar por uma identidade interrogativamente aberta.
Neste quadro, há hoje a tendência para valorizar sobretudo a diferença: é a diferença que nos enriquece, diz-se. Quem pode pôr essa afirmação em dúvida, quando se percebeu que a identidade é atravessada pela alteridade? No entanto, se podemos entender-nos, é porque somos fundamentalmente iguais.
Como recordava recentemente, em Santa Maria da Feira, num debate sobre o diálogo intercultural, o filósofo Fernando Savater, a semelhança entre os seres humanos é que cria a riqueza e funda a humanidade. Reconhecemo-nos, porque somos semelhantes. Só porque o fundamental é a nossa semelhança é que há igualdade de direitos e só porque não há diferença de direitos fundamentais é que há o direito à diferença. Afinal, "não há ninguém tão convencido da diferença como um racista".
Claro que, no encontro com o outro, nunca se pode esquecer que o outro é um outro eu e ao mesmo tempo um eu outro, de tal modo que nunca nenhum de nós saberá o que é e como é ser outro enquanto outro, eu outro. Mas o que mais nos interessa é a semelhança, pois, nas diferenças, somos todos humanos, reconhecendo-nos.
Se me perguntam pelo fundamento último da dignidade humana, digo que é a nossa comum capacidade de perguntar. O que nos reúne é uma pergunta inconstruível, sem limites, que tem na raiz o infinito e nele desemboca, sendo as culturas tentativas de formulá-la e perspectivar respostas.
Aqui, assenta a convivência fraterna e digna da Humanidade, reconhecendo todos como humanos. Mas, como também lembrou Savater, inimigos maiores desta convivência são a pobreza e a ignorância. Rejeitamos os pobres, porque metem medo: nada nos dão e obrigam-nos a dar. A ignorância é outra fonte de susto: quando se não reconhece a semelhança, teme-se o diferente.
Aí está, pois, a urgência da solidariedade, assente no reconhecimento da semelhança.
Nesta solidariedade, justiça e caridade têm de abraçar-se. Sobre este abraço, Bertolt Brecht, o famoso escritor marxista, que lia a Bíblia, escreveu estes versos inultrapassáveis: "Contaram-me que em Nova Iorque,/na esquina da rua vinte e seis com a Broadway,/nos meses de Inverno, há um homem todas as noites/que, suplicando aos transeuntes,/procura um refúgio para os desamparados que ali se reúnem.//Não é assim que se muda o mundo,/as relações entre os seres humanos não se tornam melhores./Não é este o modo de encurtar a era da exploração./No entanto, alguns seres humanos têm cama por uma noite./Durante toda uma noite estão resguardados do vento/e a neve que lhes estava destinada cai na rua.//Não abandones o livro que to diz, Homem./Alguns seres humanos têm cama por uma noite, / durante toda uma noite estão resguardados do vento / e a neve que lhes estava destinada cai na rua. / Mas não é assim que se muda o mundo, / as relações entre os seres humanos não se tornam melhores. /Não é este o modo de encurtar a era da exploração."
Anselmo Borges,
In DN