domingo, 7 de dezembro de 2008

NATAL: Pobres de pedir

O Ti António da Bicha
Magro, escanzelado, vestia uns trapos que, mesmo como trapos, já haviam conhecido melhores dias. Com o seu chapéu roto, mais parecia um espantalho das searas, do que um ser humano que Deus ao mundo tenha posto. Era assim o Ti António da Bicha, um pobre pedinte que, quando eu era ainda moço, dos meus sete, oito anos, aparecia na nossa casa, a pedir esmola. Batia ao portão, abria a aldraba – naquele tempo não era necessário fechar as portas à chave – e pedia uma esmolinha por amor de Deus, para matar a fome, com a cara triste de pedinte, como era conveniente! Nós, os filhos da casa, tínhamos, por este homem, não sei se respeito, se medo. - Vai ao portão ver quem é, diz a minha mãe! Fui. - Mãe, é o Ti António da Bicha a pedir esmola! - Ele que espere um pouco e tu vem cá. Cheguei à casa do forno onde minha mãe já tinha posto sobre a mesa um naco de boroa e duas batatas. Esperei. A minha mãe veio do lado da salgadeira trazendo um pedaço de toucinho salgado. - Leva isto ao pobre. Estamos em vésperas de Natal e ele tem de ter com que matar a fome! Fui. Ao entregar a esmola, notei que deu uma dentada na boroa, guardando o resto num dos lados do saco. As batatas guardou-as noutro. Ao receber o toucinho, olhou-o, como que duvidando da dádiva que estava a receber. Guardou-o com cuidado, olhou-me e sorriu. Foi a única vez que vi aquele rosto sorrir. - Deus vos dê saúde e sorte para o poderem ganhar, foi o agradecimento que lhe ouvi, ao mesmo tempo que murmurava uma Ave-maria, que acabaria logo que eu deixasse de o ouvir! E seguiu a sua viagem para o portão próximo, o do vizinho Sarabando. Ângelo Ribau

4 comentários:

  1. São estórias como esta que fazem a História da nossa terra.
    comovente..mas lutemos no nosso dia a dia para que não haja mais
    Tis Antónios da bicha
    Um abraço
    marieke

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  2. Lembro-me bem do ti António da Bicha; foi alguém que sempre conheci e que portanto considerava como fazendo parte da realidade dos meus tenros anos. No seu percurso diário era às vezes acompanhado pela garotada dentro daquelas zonas a que chamávamos "cantos". Logo a seguir o grupo era substituido.
    Segundo a minha mãe era oriundo duma família com posses mas a perda da mulher atirou-o para aquele desinteresse pela vida. O desgosto provocou-lhe alguma fragilidade emocional que o levou a tingir as galinhas do capoeiro de preto. Quando andava na primária e contei isto aos meus amigos de aventuras, resolvemos uma tarde de verão explorar o lugar onde tinha a sua cabana num areal da Gafanha de Aquém. Lá estava o capoeiro e a criação era toda preta, mas esta de origem.
    Tinha um sobretudo que mais parecia uma manta de retalhos: ele próprio ia acrescentando pedaços de tecido como telhas sobrepostas num telhado. Era uma figura do nosso quotidiano cuja lembrança fez com que lhe atribuíssem o nome de uma rua na Gafanha da Nazaré.

    João Marçal

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  3. Mais uma estória do Ti António da Bicha, que com outras, farão a história deste homem.
    Os elementos fornecidos pelo João Marçal, e que eu desconhecia, são mais uma achega, para a história da nossa terra. Haverão outros, companheiros da nossa meninice, que conhecem outros episódios da vida deste homem, e que não devem ficar no esquecimento. Vamos a isso

    Ângelo Ribau

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  4. O que eu posso lembrar leva-me a dizer que ele morava, da facto, na Gafanha de Aquém, perto da antiga fábrica das bolachas. Agora a razão por que se tornou pedinte é que eu desconheço. A casa, para a época, era normal.

    FM

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