Um passo democrático positivo dado nos últimos dias foi, sem dúvida, o alargamento da representação partidária na assembleia regional dos Açores, com a alegria de se votar livremente. Sempre que haja mais vozes a ouvir-se, desde que o bem do povo açoriano seja o interesse de quem fala, a democracia aparece como benefício de todos.
“Não há bela sem senão” e mais de 50% de abstenções em dia de sol, é de mais. Amanhã já não se falará disso, mas o facto provoca interrogações à espera de resposta. Nenhum partido pode cantar vitória, e muito menos o que governa com maioria, quando cresce o desinteresse do povo por um acto central do regime democrático. Assim nos Açores, no continente, em qualquer autarquia. Lá e cá, o povo que, no seu conjunto, festejou a liberdade do voto e o acesso alargado às urnas, quando se omite, não age sem razões. Há que tentar percebê-las.
Muitas se devem, por certo, ao modo como se vive a política partidária e como actuam os seus profissionais neste jogo habitualmente, mais ainda por altura de eleições. Não se pode deitar a culpa só para o comodismo e da irresponsabilidade cívica dos faltosos, embora também estes existam em muitos casos. O facto, porém, tem mais a ver com o comportamento dos políticos da ribalta e dos que lhes fazem corte, pelo modo como se relacionam uns com os outros, pelos objectivos porque se batem, pela escandalosa contradição nas suas palavras, atitudes e juízos, consoante se está no governo ou na oposição.
Tem a ver com a argumentação usada para se defenderem e acusarem mutuamente, e com a memória parada no tempo, que apenas se gasta a vasculhar o que se disse há anos ou se fez há décadas, para disso fazer arma de arremesso com o gáudio das suas claques. Tem a ver com o malabarismo de uma linguagem com sorrisos, que responde sobre alhos quando se falou de bugalhos.
Tem a ver com a mentira com a aparência de verdade, que tanto se cultiva no jogo da política partidária, de modo a já se dizer que não é bom político quem não sabe mentir. Gostava de ver profissionais competentes, psicólogos, psiquiatras, sociólogos e gente de bom senso e sensibilidade aguçada a estudar, a sério, os comportamentos públicos dos políticos e dos seus fanáticos partidários, que aguardam vez e lugar remunerado no palco de um regime de favores.
O povo não é estúpido, nem desinteressado do que lhe diz respeito. Apenas vai deixando de acreditar e, pelo alheamento das eleições, mostra o cartão vermelho ao trânsito mal encaminhado e empurrado para um beco escuro e sem saída. A democracia exige uma educação adequada para a sua prática e para a sua vivência social, coisa que não se vem fazendo. Ao contrário, criam-se ou permitem-se condições para que não se chegue lá ou se chegue, por empurrão, daqui a um século.
O povo perde, mas há sempre alguém que ganha, por um tempo, também ele passageiro. A abstenção às urnas pode ser corrigida com leis objectivas e sensatas, mas só será vencida com uma prática democrática digna dos responsáveis partidários.
O caminho da democracia não se faz a aliciar o povo e a prometer-lhe o que não se pode dar, nem a dizer o que lhe agrada e a calar-lhe a verdade. Faz-se a esclarecer, a informar correctamente, a ajudar a crescer no sentido crítico e no uso correcto da liberdade, a criar condições e a dar testemunho de respeito pela diferença, a não fazer dos contrários inimigos a abater, mas cidadãos a acolher pelo contributo que podem e devem dar à causa pública.
Prestigiar a acção politica é caminho certo para construir a democracia. As maiorias traduzem-se por responsabilidade mais acrescida, nunca por orgulho que menospreza os vencidos. Numa democracia todos fazem falta e todos têm lugar. O povo não se abstém sem razão, nem desiste de ser ele quem mais ordena. Alguns políticos já assim entenderam. Para outros, a lição não cola e preferem o papel de vendedor de feira.
António Marcelino